sábado, 22 de fevereiro de 2025

era uma vez

 

Odalisque, Guillarme Seignac, 1900


a muito tempo atrás

(quando os pulmões do mundo

respiravam o ar estreito da juventude

e os meus colegas de colégio pareciam

teimosos pássaros a sobrevoarem um tempo

cheios de asas de alegria, entusiasmo -

tirando o pior que rugia lá fora -

esperanças, bonitezas e perspectivas)

eu acordava, corria pro banho,

sob luz fria da madrugada,

escovar os dentes, tomar banho

e voltar correndo

pra escolher a roupa cansada de todo dia,

tomar café com leite, pão e manteiga

crente no ônibus pontual

que me levaria para 9 horas de trabalho

de segunda a sexta-feira…

(às vezes aos sábados ou domingos

meu chefe nos convocava pro balanço

e lá íamos engaiolados, na kombi da firma,

contabilizar os detalhes e sobras

da velha fábrica de percaline…)


ó tempo que não passava!

pois nada sabia, apenas intuía

o anormal que me acostumara

às ordens imperiosas da mãe-pátria,

a quem eu devia amar ou deixar,

(obedecer era tudo!)

e lá ia com fome, com sono

esperar o carnaval chegar,

cumprir a regra geral…

e até casei, de papel passado,

com o lar doce lar

e fui dormir no cabaré

à procura daquele amor

que tatuou cicatrizes em minh’alma

e apertou minha mão no velho cinema

diante das imagens do príncipe valente…

mas quem era eu pra sustentar

aquela mulher da vida, zélia linda,

última flor do lácio,

a me arrastar à poesia,

a rebobinar memórias,

último refúgio que alimenta,

tal qual numa fita de Fellini,

o seio túrgido da paixão


 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

ódio

 

Woman with Revolver, Alex Colville, 1987



o ódio tem nome, sobrenome,

selo, brasão e armas…

endereço gravado em mármore

altas portas de excêntricos adornos

cercas pontiagudas e elétricas

protetoras de cifras e sombras espertas.


frágil, humano, simples em essência,

o ódio é um corpo armado e nu

a erguer aos ventos ordinários altares

e engendrar deuses

no espelho estilhaçado do mundo

para negociar a extinção do próprio abismo.


o ódio leva as crianças à disney todo ano

frequenta culto aos domingos

faz dedutíveis doações

e sonega convicto

qualquer solidariedade

que não lhe renda fama e fortuna…

porém, em surto contínuo e calculado

propaga, desesperado

que seu direito de odiar é censurado

pelo jugo cruel da inveja opressora

negadora do mérito empreendedor

do trabalho que liberta


(eis um duelo narcísico ao pôr do sol:

o ódio exige reparo às próprias ofensas

infringidas pelo egoísmo na crença

da imagem e semelhança infalíveis…)


esquecido do abismo da dívida pública,

da sangrenta desigualdade que consome

a mínima justiça,

o ódio constrói muros,

atiça o fogo

sibila, voa

e normal ecoa

nos corriqueiros olhos

da vergonha e desgraça alheias.



 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

colagem

 

A Loira da Guerra Fria, Robert G. Harris, 1959


sonho com a porta inexistente

as peças do quebra-cabeça não se encaixam…


o humorista bruno costali,

após andar com medo de voltarmos a 2018

passou a ter medo de regredimos a 1940,

nos brinda com a melhor definição de fascismo:

mistura de gente ruim com gente burra.


as rachaduras nas paredes denunciam

o vilipêndio que devasta o buraco da fechadura

tudo é ponto de vista,

tudo é tabu, nada é sagrado


trump assume transformar gaza numa dubai

que os palestinos desapropriados

procurem outro lugar pra sonhar…


a escolha me foi imposta numa mesa de pôquer…

(as inteligências artificiais estão sob restrição de uso)

talvez, no fim, o vazioesse enorme silêncio e ausência,

seja a única rota que me resta.