sábado, 30 de novembro de 2024

velhas amizades

 

Retrato do Dr.Gachet, Vicente van Gogh, 1890


 … existiu uma

a quem dediquei poemas

e plenamente embriagado

partilhei a ilha desconhecida


mas, lembro,

vez por outra, doutras

de quem, farsante

sujo de promessas, 

fugi


hoje, longe do vício

resgato

velhas amizades


 


sábado, 23 de novembro de 2024

Uma fábula anônima, digna do Borges

 

Imagem IA, Night Café


Assim que morreu, Juan encontrou-se num belíssimo lugar, rodeado pelo conforto e beleza que sonhara. Um sujeito vestido de branco aproximou-se:

Você tem direito ao que quiser, qualquer alimento, prazer, diversão…

Encantado, Juan fez tudo que havia sonhado fazer durante a vida. Depois de muitos anos de prazeres, procurou o sujeito de branco:

Já experimentei o que tinha vontade. Preciso agora de um trabalho, para me sentir útil.

Sinto muito, disse o sujeito de branco, mas esta é a única coisa que não posso conseguir. Aqui não há trabalho.

Que terrível, disse Juan, passar a eternidade morrendo de tédio. Preferia mil vezes estar no inferno.

O homem de branco aproximou-se e disse em voz baixa:

E onde o senhor pensa que está?


 

sábado, 16 de novembro de 2024

O olho da alma

Visão, Odilon Redon, 1883


Sentado diante da minha casa, jamais imaginaria que um transatlântico, vindo do oeste, invadiria minha rua e passaria a me perseguir.

Na fuga, consigo encontrar algumas pessoas das quais procuro saber o que está acontecendo, o que aquele navio está fazendo em terra firme e se já viram algo parecido…

Ninguém bola às minhas preocupações e permanecem enclausuradas em suas próprias certezas/incertezas enquanto tagarelam de si pra si.

Chego perto de algumas delas e noto seus olhos baços, sem brilho… a vida parece tão distante daqueles olhos! Recuo com horror. Entrei num universo paralelo?

A sorte é que a embarcação desiste de mim. Vejo-a rasgar a terra em direção ao norte. O que me leva ao sul, acompanhado pela visão tormentosa daqueles olhos ausentes. Logo deparo-me com outras, com os olhos cada vez mais embaçados, fixos, sem movimento.

Fico intrigado e decido procurar ajuda. Mas de quem? Todos trazem nos olhos aquela atmosfera obscura, sombria… Grito assombrado: “Porque deixais que o abismo tome conta dos vossos olhos”?

Alguém me toca no ombro e estende-me um espelho: - “Já olhaste para os teus?”

Defronto-me com uma visão chocante: meus olhos exibem uma íris também opaca e, repulsa, desprovida de movimento. Jogo o espelho ao chão.

Duas moças, simpáticas, veem meu estado e buscam me consolar.Olhe para os nossos, também são opacos e sem movimento, mas aprendemos a movê-los deformando a plástica das nossas faces… até conseguimos apresentar um simulacro de vida… engenhoso, não?!”.

O homem que me havia tocado o ombro, acrescenta: “Posso te ajudar. Trago bolas de gude para qualquer emergência…”

Aproxima-se com uma pinça enquanto eu, sem reação, permito que retire meus glóbulos oculares. Imediatamente encaixa e ajeita uma bola furta-cor de vidro maciço na minha órbita direita. “Se não tivesses quebrado o espelho veria que ficou bem melhor”. E repete a operação no lado esquerdo. Desajeitado, agradeço a ajuda e retomo meu caminho na direção de casa.

Dez passos adiante sinto me pesar o rosto, passo a mão: um dos olhos de vidro escorrera coisa de dois centímetros e arrastara a pele junto. Mais adiante o peso na face aumenta. As duas esferas vítreas estão quase na altura do queixo. Não preciso de espelho para perceber que meu aspecto é o de uma aberração. Agoniado, arranco aquelas excrescências. E quedo desesperançado. Conseguiria prosseguir?

Parado ali no meio do mundo, a ouvir aquelas vozes monologando dilemas e a perspectiva do navio acontecer de voltar a me perseguir, sinto-me o mais miserável dos seres vivos sobre a Terra e num gesto involuntário olho para cima: vejo uma miríade de estrelas a cintilarem no céu escuro nesta agitada noite.

Enxergo. Cessa a perturbação. Os olhos da alma se abrem.