Visão, Odilon Redon, 1883
Sentado diante da minha casa, jamais imaginaria que um transatlântico,
vindo do oeste, invadiria minha rua e passaria a me perseguir.
Na
fuga, consigo
encontrar
algumas pessoas
das quais procuro
saber o que está
acontecendo, o que aquele navio está
fazendo em terra firme e se já viram
algo parecido…
Ninguém
dá
bola às minhas preocupações e permanecem
enclausuradas em suas
próprias
certezas/incertezas
enquanto
tagarelam
de
si pra
si.
Chego
perto de algumas
delas e noto
seus olhos baços, sem brilho… a
vida parece
tão distante daqueles olhos!
Recuo
com horror. Entrei
num universo paralelo?
A
sorte é que a
embarcação
desiste
de mim. Vejo-a
rasgar a terra em direção ao norte. O que me leva ao sul,
acompanhado pela visão
tormentosa
daqueles
olhos ausentes. Logo
deparo-me
com outras, com os olhos cada vez mais embaçados,
fixos,
sem movimento.
Fico
intrigado e decido procurar ajuda. Mas de quem? Todos trazem nos
olhos aquela atmosfera obscura, sombria… Grito assombrado: “Porque
deixais que o abismo tome conta dos vossos olhos”?
Alguém
me toca
no ombro e estende-me um espelho: - “Já olhaste
para os
teus?”
Defronto-me
com uma visão chocante:
meus
olhos exibem
uma íris também opaca e, repulsa, desprovida de movimento. Jogo
o espelho ao chão.
Duas
moças, simpáticas, veem
meu estado e buscam
me
consolar.
“Olhe
para
os nossos, também são opacos e
sem movimento,
mas aprendemos a movê-los deformando
a
plástica das nossas
faces… até conseguimos apresentar
um
simulacro
de vida…
engenhoso,
não?!”.
O
homem que
me havia tocado o ombro, acrescenta:
“Posso te
ajudar.
Trago bolas
de gude para
qualquer emergência…”
Aproxima-se
com uma pinça enquanto
eu, sem reação, permito que retire
meus glóbulos oculares.
Imediatamente
encaixa e ajeita
uma
bola furta-cor
de
vidro maciço na minha órbita direita.
“Se não tivesses quebrado o espelho veria que ficou bem melhor”.
E repete
a operação no lado esquerdo. Desajeitado,
agradeço
a ajuda e
retomo
meu caminho na direção de casa.
Dez
passos adiante sinto me pesar o rosto, passo
a mão: um dos olhos de vidro escorrera
coisa
de dois centímetros
e
arrastara a pele junto.
Mais adiante o peso na
face aumenta.
As
duas esferas vítreas
estão
quase na altura do queixo. Não
preciso de espelho para perceber que meu aspecto é o de uma aberração.
Agoniado,
arranco
aquelas
excrescências. E quedo
desesperançado. Conseguiria
prosseguir?
Parado
ali no meio do mundo, a ouvir aquelas vozes monologando dilemas e a
perspectiva do navio acontecer de voltar a me perseguir, sinto-me o
mais miserável dos seres vivos sobre a Terra e num gesto
involuntário olho para cima: vejo uma miríade de estrelas a cintilarem no céu escuro nesta agitada noite.
Enxergo.
Cessa a perturbação. Os olhos da alma se abrem.