sábado, 16 de novembro de 2024

O olho da alma

Visão, Odilon Redon, 1883


Sentado diante da minha casa, jamais imaginaria que um transatlântico, vindo do oeste, invadiria minha rua e passaria a me perseguir.

Na fuga, consigo encontrar algumas pessoas das quais procuro saber o que está acontecendo, o que aquele navio está fazendo em terra firme e se já viram algo parecido…

Ninguém bola às minhas preocupações e permanecem enclausuradas em suas próprias certezas/incertezas enquanto tagarelam de si pra si.

Chego perto de algumas delas e noto seus olhos baços, sem brilho… a vida parece tão distante daqueles olhos! Recuo com horror. Entrei num universo paralelo?

A sorte é que a embarcação desiste de mim. Vejo-a rasgar a terra em direção ao norte. O que me leva ao sul, acompanhado pela visão tormentosa daqueles olhos ausentes. Logo deparo-me com outras, com os olhos cada vez mais embaçados, fixos, sem movimento.

Fico intrigado e decido procurar ajuda. Mas de quem? Todos trazem nos olhos aquela atmosfera obscura, sombria… Grito assombrado: “Porque deixais que o abismo tome conta dos vossos olhos”?

Alguém me toca no ombro e estende-me um espelho: - “Já olhaste para os teus?”

Defronto-me com uma visão chocante: meus olhos exibem uma íris também opaca e, repulsa, desprovida de movimento. Jogo o espelho ao chão.

Duas moças, simpáticas, veem meu estado e buscam me consolar.Olhe para os nossos, também são opacos e sem movimento, mas aprendemos a movê-los deformando a plástica das nossas faces… até conseguimos apresentar um simulacro de vida… engenhoso, não?!”.

O homem que me havia tocado o ombro, acrescenta: “Posso te ajudar. Trago bolas de gude para qualquer emergência…”

Aproxima-se com uma pinça enquanto eu, sem reação, permito que retire meus glóbulos oculares. Imediatamente encaixa e ajeita uma bola furta-cor de vidro maciço na minha órbita direita. “Se não tivesses quebrado o espelho veria que ficou bem melhor”. E repete a operação no lado esquerdo. Desajeitado, agradeço a ajuda e retomo meu caminho na direção de casa.

Dez passos adiante sinto me pesar o rosto, passo a mão: um dos olhos de vidro escorrera coisa de dois centímetros e arrastara a pele junto. Mais adiante o peso na face aumenta. As duas esferas vítreas estão quase na altura do queixo. Não preciso de espelho para perceber que meu aspecto é o de uma aberração. Agoniado, arranco aquelas excrescências. E quedo desesperançado. Conseguiria prosseguir?

Parado ali no meio do mundo, a ouvir aquelas vozes monologando dilemas e a perspectiva do navio acontecer de voltar a me perseguir, sinto-me o mais miserável dos seres vivos sobre a Terra e num gesto involuntário olho para cima: vejo uma miríade de estrelas a cintilarem no céu escuro nesta agitada noite.

Enxergo. Cessa a perturbação. Os olhos da alma se abrem.


 

sábado, 9 de novembro de 2024

sou anjo

 

São Mateus e o Anjo, Caravaggio, 1602


sim creio: sou um

alguns não são

uns mais que outros… e se deus

escreve certo por linhas tortas

todos, no fundo, o são

ou, pelo menos, dormem como tal

a religião o tempo todo nos diz como devemos viver dormir levantar escovar os dentes pentear os cabelos vestir roupa tomar café sair pegar trânsito bater ponto trabalhar almoçar trabalhar mais voltar pegar trânsito chegar em casa moído não falar nunca do que sente do que atormenta do que tá pegando porque o bicho pega sim quando pegar soltar os cachorros em cima da família porque todo mundo repete de olhos fechados que é preciso acreditar em mágica e a gente descrente acredita

nesse negócio de dizer que não somos anjos porque anjo nascemos e vamos morrer anjo mesmo que não cheguemos a nenhum céu porque já tivemos um

e prometem acabar com toda confusão crime piração engôdo mentira humilhação desde que tenhamos fé nas nossas ofertas e

acreditemos no dever combater tais coisas que atazanam o mundo

com tanta fé que penso que a coisa já estaria líquida e certa e a gente teria descoberto Xangri-Lá

que tá lá no sul lugar que nunca conhecerei porque não tenho condições de ser veranista que banca descanso sossego distância das tais coisas que falei

e isto basta pra gerar opinião sobre tudo como se fosse um dever como se viver fosse uma coisa só

e querem porque querem que seja assim mas é o caos assim tal qual uns conhecidos que exigem que a gente viva em ordem unida a bata continência para bandeira de país estrangeiro porque esse é o único jeito de resolver nossos problemas e só restará aquela velha ideia de que somos todos pecadores mas alguns são mais pecadores que outros logo…

sou anjo


 

sábado, 2 de novembro de 2024

aquele que ri

 

Conrad Veidt, O Homem Que Ri, filme de 1928




não somos

quem pensamos que somos


somos

um extraordinário,

um extravagante projeto

disseminado em cópias

consagradas

na suposta ideia

de um original perdido?

desconhecido

ausente, inexistente?


não somos o que somos

nem o que pensam que somos

nem o que querem que sejamos


apesar de tudo que dissemos

criamos, inventamos,

somos a exibição

de um espetáculo fraco

sobre alguém fraco

a mais fraca das bestas


minha esperança

é que você perceba

que além da piada infame

do chiste de mau gosto

somos sonhadores, estrelas

delirantes,

ferradas e choronas

desde sempre

a exigirem, com escândalo,

que a dor que fingimos doer

assuma o lugar da dor verdadeira

e seja sacrificada no altar

da individual singularidade

embora fatalmente, quem pereça

sejamos nós, matados

por nossa ignorante

e perversa ingenuidade