sábado, 9 de novembro de 2024

sou anjo

 

São Mateus e o Anjo, Caravaggio, 1602


sim creio: sou um

alguns não são

uns mais que outros… e se deus

escreve certo por linhas tortas

todos, no fundo, o são

ou, pelo menos, dormem como tal

a religião o tempo todo nos diz como devemos viver dormir levantar escovar os dentes pentear os cabelos vestir roupa tomar café sair pegar trânsito bater ponto trabalhar almoçar trabalhar mais voltar pegar trânsito chegar em casa moído não falar nunca do que sente do que atormenta do que tá pegando porque o bicho pega sim quando pegar soltar os cachorros em cima da família porque todo mundo repete de olhos fechados que é preciso acreditar em mágica e a gente descrente acredita

nesse negócio de dizer que não somos anjos porque anjo nascemos e vamos morrer anjo mesmo que não cheguemos a nenhum céu porque já tivemos um

e prometem acabar com toda confusão crime piração engôdo mentira humilhação desde que tenhamos fé nas nossas ofertas e

acreditemos no dever combater tais coisas que atazanam o mundo

com tanta fé que penso que a coisa já estaria líquida e certa e a gente teria descoberto Xangri-Lá

que tá lá no sul lugar que nunca conhecerei porque não tenho condições de ser veranista que banca descanso sossego distância das tais coisas que falei

e isto basta pra gerar opinião sobre tudo como se fosse um dever como se viver fosse uma coisa só

e querem porque querem que seja assim mas é o caos assim tal qual uns conhecidos que exigem que a gente viva em ordem unida a bata continência para bandeira de país estrangeiro porque esse é o único jeito de resolver nossos problemas e só restará aquela velha ideia de que somos todos pecadores mas alguns são mais pecadores que outros logo…

sou anjo


 

sábado, 2 de novembro de 2024

aquele que ri

 

Conrad Veidt, O Homem Que Ri, filme de 1928




não somos

quem pensamos que somos


somos

um extraordinário,

um extravagante projeto

disseminado em cópias

consagradas

na suposta ideia

de um original perdido?

desconhecido

ausente, inexistente?


não somos o que somos

nem o que pensam que somos

nem o que querem que sejamos


apesar de tudo que dissemos

criamos, inventamos,

somos a exibição

de um espetáculo fraco

sobre alguém fraco

a mais fraca das bestas


minha esperança

é que você perceba

que além da piada infame

do chiste de mau gosto

somos sonhadores, estrelas

delirantes,

ferradas e choronas

desde sempre

a exigirem, com escândalo,

que a dor que fingimos doer

assuma o lugar da dor verdadeira

e seja sacrificada no altar

da individual singularidade

embora fatalmente, quem pereça

sejamos nós, matados

por nossa ignorante

e perversa ingenuidade


 

sábado, 26 de outubro de 2024

o poema é uma construção

 

New Man, El Lissitzky, 1923


manda a natureza

que se more no poema

e ria da chuva que molha o rosto

do vento que açoita o sono

e do ranger das ruínas

que embala o sonho…


o poema é uma construção

engraçada… passeia descalço e banguela

à cata da palavra utópica

que abriga a gargalhada…


o poema é uma construção

hilária… e por ser cômico

o poema é trágico

chora, lamenta, se descabela

xinga, enfia o dedo na ferida,

e vai pra casa discutir com a mulher

doido por sexo de conciliação


o poema é uma construção

maravilhosa… cabe uma cria por vez