sábado, 26 de outubro de 2024

o poema é uma construção

 

New Man, El Lissitzky, 1923


manda a natureza

que se more no poema

e ria da chuva que molha o rosto

do vento que açoita o sono

e do ranger das ruínas

que embala o sonho…


o poema é uma construção

engraçada… passeia descalço e banguela

à cata da palavra utópica

que abriga a gargalhada…


o poema é uma construção

hilária… e por ser cômico

o poema é trágico

chora, lamenta, se descabela

xinga, enfia o dedo na ferida,

e vai pra casa discutir com a mulher

doido por sexo de conciliação


o poema é uma construção

maravilhosa… cabe uma cria por vez



sábado, 19 de outubro de 2024

poemetos

 

Poema I, Joan Miró, 1968


I

gelado inverno

intruso mosquito

ardor do inferno


II

a menina no farol

(malabrares e destino)

equilibra o sol


III

o maior vê caráter

e educa

o menor aparência

e julga


IV

certas coisas

só em sonho

outras,

nem em sonhos


V

onde andas com a cabeça

se cabeça foi feita pra chapéu

e chapéu já não há?


VI

enquanto esperas

(e estás sempre à espera)

tens todo o tempo a teu favor


VII

quando te encontras só

tudo é vazio

preencha-o sem medo



sábado, 12 de outubro de 2024

Homens da minha vida

 

Escrita, Zhang Ziaogang, 2005


Minha primeira paixão? Pateta (o amigo do Mickey). Em seguida encontrei Cavaleiro Negro, Zorro, Jerry Lewis, Elvis Presley… Cinema e quadrinhos, quadrinhos e cinema… amor à primeira olhada num tempo de descoberta da palavra escrita e da projeção anímica.

Um dia li um livro do Monteiro Lobato (não lembro o título), e uma passagem me chamou atenção: um aparelho nos fazia viajar à pré história da humanidade. Explodiu minha cabeça… Mal sabia que, adiante, conheceria a televisão: profético!

Nos anos 60, época do ginásio, tive um professor de português que me mostrou o porquê participar de protestos e passeatas… entendi o afeto que nutri por ele quando mais tarde encontrei Robin Williams na Sociedade dos Poetas Mortos.

Clint Eastwood tornou-se o durão mais amável quando me apresentou Os Imperdoáveis. Também me cativaram, pelo charmoso modelo de masculinidade, Marcello Mastroianni, Marlon Brando, Al Pacino, Robert De Niro… Todos melhores amigos de qualquer adolescente que deseja ser amado por todas as mulheres do mundo.

Não me peçam explicações, mas nunca gostei do Superman, Batman ou qualquer outro super-herói. É que sempre acreditei mais no possível que no improvável. Talvez por isto, a figura religiosa de Deus nunca tenha sido objeto das minhas preocupações, embora tenha, na infância, servido à Igreja na posição de coroinha (logo repugnado pela aspereza da barba do sacristão e os charutos fedorentos do senhor bispo), mas descobri que os autoproclamados representantes da divindade, jamais correspondem àquilo que colocam na boca do seu deus, mas como são os únicos que falam Dele, acaba que o Todo Poderoso termina com a moral mais suja que pau de galinheiro.

Mas amei muitos semideuses, principalmente quando me foram apresentados pelo carinho do professor Junito Brandão em suas histórias assombrosamente vibrantes de seres inaugurais e mitológicos.

O professor Joseph Campbell me desvendou As Máscaras de Deus e com ele percebi a mecânica que movimenta esta criação ardilosamente humana.

Isaac Asimov me fez entender, com A Última Pergunta, que amar é sobretudo conhecer.

Borges e suas Ficções foi amor da primeira linha à última linha; As Cidades Invisíveis fizeram tanto carinho na minha alma que ainda hoje penso em sair de porta em porta a perguntar podem dedicar um instante para ouvir a palavra do Ítalo Calvino.

Reservo um cantinho secreto do meu ser para o Pessoa, quase um heterônimo de mim mesmo.

Graciliano Ramos foi outro que, com suas Vidas Secas, São Bernardo, Histórias de Alexandre e A Terra dos Meninos Pelados, não me deixou alternativa senão amá-lo.

Em meio a tantos implacáveis fuderosos fodásticos narradores da fantástica vida real – Shakespeare, Amado, Garcia Marques… é em Machado de Assis que me encontro, certo de estar, na companhia de alguém que sente e conhece a verdadeira, bela e contraditória experiência humana.