sábado, 10 de agosto de 2024

instante 60

 

Enio Crusius, Pessoas, 2012



acaso me virem

numa foto, vídeo

leiam ou ouçam

algo do que fui ou fiz

não vos enganeis,

vós que jamais conhecerei -

estivestes presentes

em cada um dos meus instantes


 

 

sábado, 3 de agosto de 2024

Pensamentos de última hora

 


The Developing Thought of a Human, Kansuke Yamamoto, 1932



Divindades nascem e morrem.

Imaginá-los é a nossa fortuna eterna

Inventá-los torna miserável nossa existência 

...


Certas coisas só em sonho

Outras, nem em sonhos

...


Só existe sentido na incompletude

Na carência, na ausência

Na saudade do mundo e

Nas coisas que inventamos

...


Quando me encontro só

Tudo é vazio

E o medo a preenchê-lo

...


Enquanto esperas

E estás sempre à espera

Tens todo o tempo a teu favor

...


Dizem: cabeça foi feita pra chapéu

Mas eis que chapéu já não há

Então, onde andas com a cabeça?

            ... 




 

sábado, 27 de julho de 2024

O moquém

 

Devorando o inimigo, Theodore de Bry, 1592



Saído da cidade grande, invadi uma casa, no litoral alagoano, no alto do mais baixo de três montes – cerca de 15 quilômetros do centro da cidade. É outra coisa poder enxergar o horizonte.

Já no primeiro dia, um susto: todos pareciam me conhecer. Você é o pai de…? A maioria acenava a cabeça em um cumprimento cordial, enquanto outros preferiam o formal bom dia, tudo bem? Penso ter encontrado uma velha família de infância. O difícil é associar meu parentesco.

Na pequena rua, todos remediados, uns mais que outros. Carros, motos e bicicletas são comuns; crianças na escola – ônibus para levá-los e trazê-los; mulheres trabalhando fora; coletivos com horário marcado; comércio em ascensão e a perspectiva de uma praça com quadra de esportes e creche para os pequenos…

Da janela dedico horas ao futuro. Vez por outra puxo conversa com alguém, informal, sem muita consequência.

O uniforme predileto é camiseta, bermuda e sandálias. Os mais antigos ainda permanecem descalços, apenas um surrado calção a lhes cobrir as partes. Me vem à lembrança os Caetés, aqueles que assaram e comeram o Sardinha… Sonhei noite dessas ao moquém (para alegria das velhas e moças que atiçavam os pequenos a remexer, com varas, as brasas debaixo de mim)... Dava pra ouvir a voz dos guerreiros a gritar contra um atrevido que arriscava pegar um pedaço da minha orelha antes que fosse provado que a carne do caraíba não era venenosa… Os mais fortes garantiam para si as melhores partes e deixavam pra lá os intestinos e a cabeça… No meio do sonho matutei: a quem caberia meu cérebro? (Esta é a parte que considero mais importante na estrutura do meu ser – aos cachorros não!)… Os olhos ardendo pela fumaça, narinas entupidas pelo cheiro forte da carne queimada: se o velho Sardinha prestou um grande serviço à Pindorama cedendo a sua ilustradíssima massa cefálica ao deleite de alguma moçoila com olhos de cigana dissimulada… Seria eu também uma espécie de salvação da pátria? Quem, dentre a gente que me acolheu, apreciaria o sabor do meu conhecimento escolástico, da minha visão holística do mundo, minha capacidade de desenterrar segredos nas profundezas da alma humana?…

Mexo e remexo minha modesta biblioteca à procura de títulos que possam me fazer lembrar porque cheguei aqui e o que virá em seguida. Mas aí, livros só leio quando alguém próximo menciona. A mesma coisa com filme, peças teatrais, exposições… Procuro me guiar pela não-moda. Se acaso sinto que o risco de perpetuar o sistema que fatura em cima das nossas carências e desejos, dou um basta e parto pra outra. Leio e assisto aquilo que considero out, mesmo que seja uma porcaria. Já tive a sensação de que era um dos poucos a participar da mensagem, o que me dava autorização para propagá-la da melhor maneira. E isso ajudou a consolidar a minha fama de rebelde.

Mas isto não explica porque cheguei a esta casa de dois pisos com a promessa de povoar um apêndice com vista exclusiva para o mar (me arrepia pensar na possibilidade dalgum especulador imobiliário bloquear a preciosa vista)… Andava eu à procura de um lugar onde pudesse finalizar a história que ainda nem comecei… E nem sei se um dia haverei de começar… Se é que tenho algo pra contar, além de fracas impressões, lampejos e cenas curtas sem começo nem fim e às vezes sem pé nem cabeça. Certamente assim, jamais irei ao moquém.