sábado, 3 de agosto de 2024

Pensamentos de última hora

 


The Developing Thought of a Human, Kansuke Yamamoto, 1932



Divindades nascem e morrem.

Imaginá-los é a nossa fortuna eterna

Inventá-los torna miserável nossa existência 

...


Certas coisas só em sonho

Outras, nem em sonhos

...


Só existe sentido na incompletude

Na carência, na ausência

Na saudade do mundo e

Nas coisas que inventamos

...


Quando me encontro só

Tudo é vazio

E o medo a preenchê-lo

...


Enquanto esperas

E estás sempre à espera

Tens todo o tempo a teu favor

...


Dizem: cabeça foi feita pra chapéu

Mas eis que chapéu já não há

Então, onde andas com a cabeça?

            ... 




 

sábado, 27 de julho de 2024

O moquém

 

Devorando o inimigo, Theodore de Bry, 1592



Saído da cidade grande, invadi uma casa, no litoral alagoano, no alto do mais baixo de três montes – cerca de 15 quilômetros do centro da cidade. É outra coisa poder enxergar o horizonte.

Já no primeiro dia, um susto: todos pareciam me conhecer. Você é o pai de…? A maioria acenava a cabeça em um cumprimento cordial, enquanto outros preferiam o formal bom dia, tudo bem? Penso ter encontrado uma velha família de infância. O difícil é associar meu parentesco.

Na pequena rua, todos remediados, uns mais que outros. Carros, motos e bicicletas são comuns; crianças na escola – ônibus para levá-los e trazê-los; mulheres trabalhando fora; coletivos com horário marcado; comércio em ascensão e a perspectiva de uma praça com quadra de esportes e creche para os pequenos…

Da janela dedico horas ao futuro. Vez por outra puxo conversa com alguém, informal, sem muita consequência.

O uniforme predileto é camiseta, bermuda e sandálias. Os mais antigos ainda permanecem descalços, apenas um surrado calção a lhes cobrir as partes. Me vem à lembrança os Caetés, aqueles que assaram e comeram o Sardinha… Sonhei noite dessas ao moquém (para alegria das velhas e moças que atiçavam os pequenos a remexer, com varas, as brasas debaixo de mim)... Dava pra ouvir a voz dos guerreiros a gritar contra um atrevido que arriscava pegar um pedaço da minha orelha antes que fosse provado que a carne do caraíba não era venenosa… Os mais fortes garantiam para si as melhores partes e deixavam pra lá os intestinos e a cabeça… No meio do sonho matutei: a quem caberia meu cérebro? (Esta é a parte que considero mais importante na estrutura do meu ser – aos cachorros não!)… Os olhos ardendo pela fumaça, narinas entupidas pelo cheiro forte da carne queimada: se o velho Sardinha prestou um grande serviço à Pindorama cedendo a sua ilustradíssima massa cefálica ao deleite de alguma moçoila com olhos de cigana dissimulada… Seria eu também uma espécie de salvação da pátria? Quem, dentre a gente que me acolheu, apreciaria o sabor do meu conhecimento escolástico, da minha visão holística do mundo, minha capacidade de desenterrar segredos nas profundezas da alma humana?…

Mexo e remexo minha modesta biblioteca à procura de títulos que possam me fazer lembrar porque cheguei aqui e o que virá em seguida. Mas aí, livros só leio quando alguém próximo menciona. A mesma coisa com filme, peças teatrais, exposições… Procuro me guiar pela não-moda. Se acaso sinto que o risco de perpetuar o sistema que fatura em cima das nossas carências e desejos, dou um basta e parto pra outra. Leio e assisto aquilo que considero out, mesmo que seja uma porcaria. Já tive a sensação de que era um dos poucos a participar da mensagem, o que me dava autorização para propagá-la da melhor maneira. E isso ajudou a consolidar a minha fama de rebelde.

Mas isto não explica porque cheguei a esta casa de dois pisos com a promessa de povoar um apêndice com vista exclusiva para o mar (me arrepia pensar na possibilidade dalgum especulador imobiliário bloquear a preciosa vista)… Andava eu à procura de um lugar onde pudesse finalizar a história que ainda nem comecei… E nem sei se um dia haverei de começar… Se é que tenho algo pra contar, além de fracas impressões, lampejos e cenas curtas sem começo nem fim e às vezes sem pé nem cabeça. Certamente assim, jamais irei ao moquém.


 

sábado, 20 de julho de 2024

Um conto do fim do mundo com jeito de crônica

 

Man at the Window, Gustave Caillebotte, 1875


Acontece que um jornal, daqueles do tipo sério, um dos tais que costumam inventar notícia sempre que o caixa vai a zero (e dizem que o caixa sempre está sempre no zero), decidiu publicar que Dom Pepe, gerente fofucho do Circo Mequetrefe deu na louca de fugir com a bilheteria do espetáculo do último final de semana e, graças aos recursos do photoshop, ilustrou a matéria com fotografias do queridinho das balzaquianas frenéticas (exímias frequentadoras dos bailes da melhor idade e saudosistas contumazes dos festivais de MPB nos anos 60), que adoram cultivar canteiros de antúrios numa chácara na periferia de uma grande cidade, lá pras bandas da caixa-prego, pertinho donde o vento faz a curva, feliz da vida tal qual pinto ciscando em terra molhada…

Escândalo como este não se criava a anos. Todos os operadores do direito, notadamente aqueles na bica de serem nomeados, sem embargos de qualquer natureza, para gozarem de sinecuras nos tribunais superiores, mostraram suas indignações em comentários nas páginas dos leitores dos periódicos de maior prestígio nas altas esferas, além de textões repletos das mais supimpas citações jurídicas do tempo do onça nas redes sociais.

Temi um tsunami, mas a marola foi logo contida com a intervenção providencial da turma que continua p*ta da vida com rumo da política e, principalmente, o preço das coisas e não encontra alternativa senão apelar para pelancas e pés de galinha que, diga-se de passagem, andam custando os olhos da cara.

As avós e mães solteiras (que carregam nas costas uma penca de buchudinhos catarrentos a título de investimento no futuro do país), foram às ruas gritar sua indignação diante da desfaçatez das patroas que somem com aquele anel de diamante e, perante a companhia de seguro acusam a doméstica de roubo de propriedade e vão à justiça solicitar o encarceramento da serviçal enquanto aumentam o valor das apólices sobre o preço futuro dos alimentos criando uma espiral de inflação que destrói a economia, precariza o trabalho e, ainda por cima, mantém a sustentabilidade de uma política econômica austera ditada pelo capital internacional que precisa investir os tubos na colonização de Marte – única saída para o aquecimento global.

Houve uma reação da ala que torce pela terceira guerra mundial, a turma que não tem dúvida de que o Cristo só retornará para levar os seus 144 mil para sentarem à direita do Todo Poderoso após a queda do sistema que usa vacina para implantar chip nas pessoas; que rotula os indivíduos com a marca da besta através do código de barras; que produz discos para serem escutados ao contrário; e aposta todos os dízimos de que o Estado de Israel é a ponta de lança deste processo de fim e recomeço do povo de Deus. Tais pregações, mesmo extrapolando as paredes do armazém de número 100 na Rua dos Aflitos (que, por sinal, deve o aluguel a mais de seis meses e, portanto, já recebeu ordem de despejo expedida pela Vara das Execuções da Capital), não conseguiu qualquer comunicação com a civilização alfacenturiana através do celular o que só fez aumentar as imprecações contra deus e todo mundo, e a adoção desesperada de um pneu a quem pudessem dirigir suas preces tal qual os fugitivos do Egito inconformados com a falta de pulso e tino do guia Moisés.

Eu, que estava desassossegado diante de tanta desinformação decidi fazer de conta que nada disso me dizia respeito e fui molhar os pés nas areias do Abaeté, na esperança de que Iemanjá desse o ar da graça e lançasse, em minha direção, os desejosos ohos da daquela morena de cabelo acastanhado que saracoteia diante do meu tesão já faz uma cara.