sábado, 13 de julho de 2024

buraco nosso de cada dia

 

William Heath Robinson (Inglaterra 1892-1944)



tantas foram as promessas

pressentidas

que voltaste… os pés na areia

são outros

sumidos rastros

na chuva e no vento

desnotados antes e

hoje assuntam o coração consertado


e dizem mais, os elementos -

lembranças perdidas

em desconhecidos rostos

que o cumprimentam

pelas vielas banhadas e carrancudas

salvas pelos inocentes

que lastreiam o futuro

de antemão povoado

de coisas, posses, posição

casas de um, dois, três andares

numa desastrosa vontade de estar acima

por cima…


tudo é tão velho e no entanto

a natureza se exibe,

farfalha e cobra nossa falha

enquanto a semente

persiste e brota

nas moças bonitas

cheias de festas e mimos

e amores instintivos

abençoados por velhas mães

interesseiras

encarquilhadas

pelo projeto de um dia sentarem à porta

e sem qualquer brasão assinalado

receberem os cumprimentos

dos passantes

que saúdam a força dum bom dia…


daí a volta e o respeito

o religioso gesto

e o amor da retribuição da volta escolhida

apenas pra se sentir parte da conversa

entre parentes que amam uma história

uma confissão, um testemunho, um causo…

o que lhes permite

fugir do desprezo como o diabo da cruz…


(somos todos iguais mas, no final,

cada um na sua casa

e até amanhã -

aguardemos a piada próxima

o caso de trancoso

a lenda que virá

porque tudo é tão precário

frágil o nosso instante

e pouco nos diverte

alguma perspectiva

além é pura morte

e a gente faz de conta

se tudo fosse se…)


hoje, ninguém foi ao médico

ou se automedicou

todos são filhos

altos, fortes e irados trabalham

e se xingam, esbofeteiam com pau armado

na cara dura sem qualquer contrição

e rezam e temem a deus

e por isso o diabo deita e rola

nos gritos, nos berros de cultos

espetacularmente desassossegados

consequências líquidas num mundo sólido,

todos estáticos.


vejo, sinto e sei da presença fáustica…

eis o humano:

cava mais fundo, cada dia

seu próprio buraco

na esperança de emergir na China.


 

sábado, 6 de julho de 2024

Consulta

 

The Doctor and The Doll, Norman Rockwell, 1926


– E aí, vamos dar um mudadinha?… Tá na hora!

– Estou inseguro.

– E o meu trabalho é evitar que o pior aconteça…

– Sei…

– Infarto… derrame… Essas coisas acontecem sem aviso…

– Compreendo. Médico algum quer encontrar seu paciente no hospital.

– Se podermos prevenir com recomendações e medicamentos, porque descuidar…?

– Temo ficar engessado…

– Tudo bem, o senhor é que nos diz: estás disposto a começar?

– Tenho vivido apenas de pequenos prazeres…

– Quem sou eu para fazê-lo ir contra a vontade?!

– Gosto de comer, beber, encontrar amigos…

– Que tipo de bebida?

– Cerveja.

– Quantas por dia?

- Uma ou duas latinhas.

– Namorada?

– Levo a vida de um monge honesto.

– Vou acrescentar na receita algo contra depressão.

– Deprimido, eu?

– Pense adiante…

– Reclamo apenas das minhas pernas inchadas…

– Cuidaremos disto.

– É muito difícil caminhar…

– Repor cálcio… dois copos de leite por dia… desnatado… consegues?

– Éééé...

– (Após alguns minutos, em silêncio, a digitar) Ótimo… um passo de cada vez… Nos veremos em três meses, está bem?

- (No ponto de ônibus) “Acho que faz mal misturar cerveja com leite… mas leite pode ser um bom remédio pra combater ressaca”.


 

sábado, 29 de junho de 2024

lei universal

 

Xadrez, Osman Hamdi Bey, 1906


não consigo provar a inexistência de deus, da imortalidade da alma e de vida após a morte

mesmo me utilizando de vasto arsenal de argumentos

enquanto

você consegue provar a existência de deus, da imortalidade da alma e de vida após a morte

utilizando-se um vasto arsenal de argumentos

argumento contra argumento… convivemos num impasse perene

a história: o dilema, em geral, tem sido resolvido com a utilização da força bruta pelo segundo, naturalizando o gesto de enfiar goela abaixo do primeiro os argumentos da fé e da revelação

de que existe uma divindade absoluta em um reino metafísico para onde irão os escolhidos, após a morte – aqueles que praticam a autoviolência e, em delírio, justificam a autoridade baseada exclusivamente no medo da punição

como justifica pascal em sua aposta

1. se você acredita em deus e ele existe, quando você morrer seu ganho é infinito, a saber, a vida eterna no paraíso

2. já se você acredita em deus e ele não existe, quando você morrer sua perda é finita, a saber, o tempo de vida que perdeu acreditando numa quimera

3. se você não acredita em deus e ele de fato não existe, quando você morrer seu ganho é finito, a saber, o tempo de vida que não perdeu acreditando numa quimera

4. mas, se você não acredita em deus e ele existe, então quando você morrer sua perda é infinita, a saber, nada menos do que a danação eterna no inferno

a esse argumento, veio einstein com a sua famosa sentença

se as pessoas são boas só por temerem o castigo e almejarem uma recompensa, a raça humana é realmente uma espécie desprezível”

sentiram?

o caminho para evitarmos a distorção espiritual e a tendenciosa ameaça da religião é suspendermos tais juízos

incentivarmos o exercício das operações intelectuais que visam determinar o que é verdadeiro e o que é falso

em um mundo de evidências

(ou então que façamos arte)

religião deveria ser um ato exercido exclusivamente no particular, do indivíduo para consigo mesmo

tudo o mais é estelionato espiritual

quem tentasse praticar religião publicamente incorreria em erro, por propaganda enganosa e, portanto, cometeria crime contra a boa fé dos vizinhos

além de nutrir e incentivar desprezo pela vida real e a nociva crença numa hipotética bem-aventurança futura da qual ninguém possui certeza alguma

a não ser aqueles que, por medo ou interesse político, dela tiram proveito em seu próprio benefício ou em benefício de um determinado grupo

kant dizia que deus não pode entrar na equação moral porque, historicamente, encontramos muitas pessoas que acreditam em deus, mas, mesmo assim, fazem todo o mal possível a seu semelhante

portanto

devemos agir como se não existisse deus, seguindo apenas nossas convicções sobre o que consideramos certo – isto sim é liberdade!

cada indivíduo, escolheria agir de tal modo que a sua ação fosse eleita lei universal…