sábado, 22 de junho de 2024

por quem chora a poesia?

 

Lágrimas de Sangre, Oswaldo Guayasamin, 1983


o que existe de poético

num cofre cheio de dinheiro…

num bilionário

a calcular uma aposta…

o que existe de espiritual

numa polpuda conta bancária?


(mesmo cínico, poeta algum

rima lucro com justiça)


um papel que vale um pedaço de empresa,

por mais valorizado que seja,

jamais soube capaz de inspirar sonetos


o que pode haver de sublime

num desumano manipulador

de cifras e percentuais?


a tragédia do regime

que se diz inspirador de propósitos

é desconsiderar a finitude da vida,

devorar-se a si mesmo, destruir o futuro

e cuspir fora as cinzas dos que sucumbem

à sua voraz e cruel frieza…


daí restar apenas lágrimas

secas, mas nascidas plenas de poesia


 

sábado, 15 de junho de 2024

primeiro nasci

 

Crossing the Stream, William-Adolphe Bouguereau, 1903


primeiro nasci

depois saí em busca de pais


mãe foi fácil

estava logo bem ali a minha espera

e após muitas idas e vindas

me cobrou apenas que aliviasse seus ombros


pai tem sido difícil

vez por outra aparece algum pretendente


mas foi na poesia

que encontrei uma voz que sussurrou:

a vida é apenas uma vontade de morrer”…


desci dos ombros da mulher minha mãe

e deixei pra lá este negócio de pai


voltei pra casa

 

mais inquieto que nunca.



 


 

sábado, 8 de junho de 2024

cinco sentidos

 

Allegory of the five senses, Theodoor Rombouts, 1632



o perfume que vem da casa ao lado

o alarido juvenil a afastar demônios

os latidos dos cães na madrugada

o ruido das ondas a descansar na praia

o gotejar da chuva na telha de flandres

a ventania que assusta os coqueiros

e a lembrança daquele amor que partiu


a sala úmida cheira a passado

e o frango com verduras que fiz ontem

me faz pensar em dormir e sonhar

até que a tarde vista o manto noturno

e acalente no colo o bebê chorão

que deseja crescer e ir pra rua aprender

a alegria quente e fria do são joão


os olhares ameaçadores dos homens, eis!

e a indiferença de suas mulheres,

maquiadas adolescentes esquecidas

de suas velhas mães banguelas

que puxam conversa no coletivo

e despertam o fingimento covarde

das pretensões burguesas televisionadas


nas ignorâncias demasiadas

meu próximo é um concorrente

devo simular que posso (quero crer)

e apertar a campainha, descer no ponto

que, neste começo de noite, me cabe…

quem sabe sinta o perfume que a vizinha exala

e ouça a criançada a botar pra correr os demônios