sábado, 15 de junho de 2024

primeiro nasci

 

Crossing the Stream, William-Adolphe Bouguereau, 1903


primeiro nasci

depois saí em busca de pais


mãe foi fácil

estava logo bem ali a minha espera

e após muitas idas e vindas

me cobrou apenas que aliviasse seus ombros


pai tem sido difícil

vez por outra aparece algum pretendente


mas foi na poesia

que encontrei uma voz que sussurrou:

a vida é apenas uma vontade de morrer”…


desci dos ombros da mulher minha mãe

e deixei pra lá este negócio de pai


voltei pra casa

 

mais inquieto que nunca.



 


 

sábado, 8 de junho de 2024

cinco sentidos

 

Allegory of the five senses, Theodoor Rombouts, 1632



o perfume que vem da casa ao lado

o alarido juvenil a afastar demônios

os latidos dos cães na madrugada

o ruido das ondas a descansar na praia

o gotejar da chuva na telha de flandres

a ventania que assusta os coqueiros

e a lembrança daquele amor que partiu


a sala úmida cheira a passado

e o frango com verduras que fiz ontem

me faz pensar em dormir e sonhar

até que a tarde vista o manto noturno

e acalente no colo o bebê chorão

que deseja crescer e ir pra rua aprender

a alegria quente e fria do são joão


os olhares ameaçadores dos homens, eis!

e a indiferença de suas mulheres,

maquiadas adolescentes esquecidas

de suas velhas mães banguelas

que puxam conversa no coletivo

e despertam o fingimento covarde

das pretensões burguesas televisionadas


nas ignorâncias demasiadas

meu próximo é um concorrente

devo simular que posso (quero crer)

e apertar a campainha, descer no ponto

que, neste começo de noite, me cabe…

quem sabe sinta o perfume que a vizinha exala

e ouça a criançada a botar pra correr os demônios 


 

sábado, 1 de junho de 2024

antipodemia

 

The Ancient of Days, William Blake, 1794




viver acossado por fantasmas

ou curtir happy hour todo santo dia


cultuar o uniforme, o igual

ou na diversidade sentir-se íntegro


ter opinião sobre as coisas

ou nada saber sobretudo


almejar a liberdade e jamais decidir per si

ou definir por si o limite da própria liberdade


esperar, com sofreguidão, o apocalipse

ou curtir o carnaval em Olinda ou Salvador


deixar-se possuir pela raiva

ou rir de si mesmo


comemorar a vitória pública

ou endeusar o poder privado


exaltar heróis – modelos de perfeição

ou tê-los apenas como exemplos


combater sonhos lúdicos libidinosos

ou se entregar ao amor infinito se fosse


buscar o fim do tormento no flagelo

ou se masturbar vez ou outra


exigir de si pra si livramento e fortuna

ou viver entre os lírios do campo


negar o engenho humano

ou acreditar na vontade da potência


escalar uma montanha de joelhos

ou caminhar nas praias alagoanas


apesar de tudo ter um mestre e guia

ou ser criador e criatura de si mesmo?