sábado, 1 de junho de 2024

antipodemia

 

The Ancient of Days, William Blake, 1794




viver acossado por fantasmas

ou curtir happy hour todo santo dia


cultuar o uniforme, o igual

ou na diversidade sentir-se íntegro


ter opinião sobre as coisas

ou nada saber sobretudo


almejar a liberdade e jamais decidir per si

ou definir por si o limite da própria liberdade


esperar, com sofreguidão, o apocalipse

ou curtir o carnaval em Olinda ou Salvador


deixar-se possuir pela raiva

ou rir de si mesmo


comemorar a vitória pública

ou endeusar o poder privado


exaltar heróis – modelos de perfeição

ou tê-los apenas como exemplos


combater sonhos lúdicos libidinosos

ou se entregar ao amor infinito se fosse


buscar o fim do tormento no flagelo

ou se masturbar vez ou outra


exigir de si pra si livramento e fortuna

ou viver entre os lírios do campo


negar o engenho humano

ou acreditar na vontade da potência


escalar uma montanha de joelhos

ou caminhar nas praias alagoanas


apesar de tudo ter um mestre e guia

ou ser criador e criatura de si mesmo?


 

sábado, 25 de maio de 2024

O Personagem que Sou

 

Untã Rori - Pintura Rupestre, Duhigó, 2014


Era uma vez o dia em que pensei: porque estamos sempre a adiar a hora de dizer, com relativa fidelidade, quem somos de fato.

Fui uma criança de certo modo isolada, morava numa casa velha, recuada, numa rua abandonada em cujo quintal em declive havia um imenso e frondoso capinzal.

Perto da porta da cozinha vivia um magro pé de pinha. Sossegado, mas de gênio muito forte. Dava pra sentir e ver que era um pé de planta rebelde, cioso da sua própria liberdade: produzia apenas um fruto por vez, caso tivesse vontade.

Numa dessas manhãs costumeiras, tal qual qualquer criança envolvida com suas artes, dei pernas a um projeto de me tornar, sem dúvida, lambança ou excentricidade, um homem das cavernas.

E foi assim que, com ajuda de uma colher, cavei um solitário buraco com fundura suficiente para acomodar alguns teréns que julguei necessários ao meu conforto: um lençol rasgado, um caixote velho e uma encardida panela.

Satisfeito, acreditei que viveria ali para sempre ou, eventualmente, pelo tempo em que ficasse de mal com mainha.

Após alguns segundos percebi que o buraco era por demais achatado, não me cabia nem mesmo agachado… Mas, embora o lugar fosse mal-ajambrado, improvisei uma cortina com um pedaço de uma velha toalha de plástico para me separar do mundo onde me sentia clandestino.

E ainda hoje me vejo, sentado no meu trono adotivo cercado por aquela terra amarela – um lar e um reino.

Mas um pensamento tagarela me assaltou: viveria do quê? Rio e mar não haviam por perto… Então seria caçador sem dó nem piedade, abateria bicho voante, rastejante e roedor – era isso ou morrer de barriga vazia todo dia antes de dormir.

Sorte minha que trouxera um estilingue e lá se foi uma avezinha que fizera ninho do pé de pinha… Uma pedra arremessada, certeira, acertou-lhe a cabecinha. E havia uma panela. Fogo não foi problema e logo, com auxílio da água da pia e um pouco sal surripiado do pacote no alto da prateleira, meu almoço pré-histórico estava pronto – foi um tantinho de nada (e nenhum prazer senti).

Garanto, a experiência não foi legal. Esperava mais. Estava exausto e com fome: trabalhara muito por tão pouco.

Já havia desistido antes de várias empreitadas e não foi difícil jogar fora essa minha breve ideia de vida neandertal.

Regressei à casa, acostumado e pesaroso à prosa silenciosa que mantinha com o ambiente do meu quarto. O tecido esvoaçante que se fingia de porta, as telhas gotejantes e o uivo do assombroso do vento embalavam minha esperança de um dia ultrapassar o temor, a ansiedade, a aflição e a incerteza de tornar-me o personagem que hoje sou.



sábado, 18 de maio de 2024

meu vizinho me odeia

 

Fallen Angel (detalhe), Alexandre Cabanel, 1846



meu vizinho me odeia

odeia meu churrasco

minha pelada aos domingos

minhas reuniões de família

os filhos que tenho

a mulher que amo

meu sono e o meu silêncio

meu vizinho odeia


meu vizinho odeia

as piadas que conto

o remédio que tomo

as risadas que dou

o time que torço

os comentários que faço

a cerveja que bebo

o ritmo que’u danço


meu vizinho odeia

quando chego

quando saio

quando vejo tv

quando danço

quando leio

quando oro

odeia até quando choro


meu vizinho me odeia,

odeia tanto

que vive trancado

e morre de medo

quando passo

e odeia mais quando ouso

sorrir para os seus olhos

miúdos, cerrados e peludos