sábado, 20 de janeiro de 2024

Póstempo

 

Gods of the Modern Wolrd-The Epic of American Civilization, 
José Orozco, 1934


Um amigo pergunta o que penso do ChatGPT. 

Temos um novo oráculo na praça. Mas ainda prefiro o I Ching, é mais poético além de exigir considerável esforço de processamento neural. 

Alguém entra no papo e diz que é preciso saber perguntar, que uma pergunta bem formulada já contém em si a resposta, que é uma ferramenta maravilhosa e coisa e tal… 

Lembro daquele robozinho que busca a mãe no filme do Spielberg. 

Que a inteligência artificial é uma realidade, permite que nos tornemos artistas plásticos, músicos, que façamos projetos arquitetônicos, jogos de guerra… Os escambaus a quatro, além de muito trabalho escolar – o que alivia em muito a pressão sobre o professorado. 

O que sobrará do meu cérebro para ser estudado caso me doe para alguma faculdade de medicina? 

Meu temor é acordar máquina que range… 

Preocupa-me a escolha de qual óleo amaciar minhas juntas e conduítes venosos, diante de uma prateleira cheia de substâncias trans, gorduras altamente saturadas, ácidos graxos e outros inúmeros combustíveis para minhas células plásticas eternamente duráveis.

Não consigo explicar mas do nada inventei uma desculpa dramática e consegui escapulir completamente da conversa e fui jogar point and click na parede lá de casa.


 

 

sábado, 13 de janeiro de 2024

estado de alma

 

Small Island, Dieter Roth, 1968



quando os arranha céus

os guindastes

as naves espaciais e os vírus

me sitiaram

não vi saída senão encolher

e encolhi…


no estado quântico que habito

perseguido por leis surreais

e estranhezas corriqueiras…

enxergo vantagem

nessa troca de verso:

em sendo tudo líquido

é normal viver embriagado 


 

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

O barro que caiu do céu

 

The Alchemist Cook, Marina Pallares, 2011


Vindo de uma longínqua galáxia, um raio de luz se aproxima do nosso sistema solar. É um meteoro. 

Na Terra, um velho camponês observa a rocha celestial cair do outro lado da colina. Entra na cabana, consulta manuscritos, apanha alguns instrumentos e sai pela porta afora correndo em direção ao local da queda. 

Em torno da enorme cratera recolhe o que consegue e volta para casa. Separa um pedaço e o restante guarda num cofre. Num moedor, reduz o fragmento a pó que, misturado com um pouco de água, produz uma argila escarlate. 

Brinca com a massa, até que, finalmente, molda uma figura – figura humana. Admirado, a leva ao forno para cozer. Após a queima, retira a estatueta, deposita numa prateleira, dá-lhe um beijo de boa noite e vai dormir. 

Tudo em volta é silêncio. Os olhos da criatura lentamente se abrem. Examina tudo à volta. Um livro atrai sua atenção. Pega. Vai até o pé da cama do velho com o livro nos braços, folheia e logo adormece. 

Ao acordar na manhã seguinte, o velho, admirado com a sua criatura, confere o livro - é a história de um menino-feito-de-madeira-que-quer-ser-gente-de-verdade. Passa a manhã preparando uma linda roupa para o seu homenzinho-de-barro-que-veio-do-espaço pois desejava muito apresentá-lo ao rei. 

Buscou um pretexto para ficar a sós com a majestade. Mas em vão, os figurões do palácio o cercaram com perguntas sobre o fenômeno que todos viram ontem, se aquilo era um sinal dos deuses, se algo de bom ou de mal estaria para acontecer, se o reino estaria ameaçado por algum tipo de força estrangeira… 

Diante de tantas indagações, falou o que pode, da posição dos astros, dos mapas astrais, apresentou um manuscrito e num ato de coragem tirou do bolso o garoto-do-barro-espacial e ninguém acreditou: caíram na risada e disseram que aquilo era uma brincadeira de mau gosto num momento de grande preocupação. Que aquilo era mágica barata, de quinta categoria. De que jeito um boneco de barro que se mexia poderia ser útil ao reino? 

E tomaram o menino-de-barro e jogaram com ele como se joga peteca. O velho, confuso, conseguiu finalmente pegar sua criação, colocá-la de volta no bolso e saiu do palácio, abatido por conta das piadas e chacotas dos fidalgos. 

No caminho de volta, o velho, frustrado, examinou se o menino-barro era mesmo algo a ser preservado, se servia para alguma coisa, se podia lhe ajudar a entender as propriedades e virtudes da rocha que veio do espaço. 

E após muito se interrogar, decidiu que o melhor seria esquecer tudo e se livrar da sua criação. Ao chegar numa encruzilhada, colocou a criatura no caminho oposto e faz sinais para que desaparecesse. A criaturinha não compreendeu aquele comportamento e, em vez de seguir pelo caminho indicado, decidiu acompanhar o mestre. 

Ao chegar em casa, o velho ainda tentou destruir o menino, o jogando ao fogo… mas se arrependeu, pediu perdão com muitos beijos e abraços. Eufórico, começou a tossir e tossiu tanto que desmaiou ali mesmo sobre a mesa. O garoto se colocou ao seu lado e pegou o livro com a história de um homem-que-cria-um-homem-com-pedaços-de-outros-homens para, antes de dormir, dar uma folheada. 

Passado um tempo, a criatura cresceu, mas ainda é de barro. Cuida dos afazeres da casa, enquanto o velho continua sobre a cama, doente, a definhar. Dedicado, domina as diversas artes que fez a fama do artesão. 

Um dia o velho o chamou pra si, lhe apontou o cofre donde foram retirados fragmentos do meteoro, manuscritos desconhecidos... E num ato final, pousou a mão sobre a cabeça do menino-homem-feito-da-pedra-que-veio-do-céu que, num passe de mágica, se viu transformado numa pessoa de carne e osso. 

O camponês-artesão sorriu para o seu filho e morreu. O rapaz envolveu o corpo em lençóis e o conduziu nos braços até a cratera do outro lado da colina onde o meteoro havia caído. 

Tristes, alguns vizinhos apareceram para o último adeus e, atônitos, viram o corpo do velho virar facho de luz e ganhar o céu e sumir na imensidão da noite centelhada de estrelas. 

Agora, a criatura humana dedicada a estudar o céu profundo, ocupa o lugar do mestre. Ajuda os vizinhos em suas solicitações. Tem sempre uma nova maneira de resolver velhos problemas. 

Os dias continuam ensolarados. As noites continuam estreladas. Meteoros continuam a cair do céu. E aquele-menino-homem-que-nasceu-da-rocha-que-veio-do-espaço segue moendo as rochas recolhidas para fazer argila vermelha. Nas horas solitárias, continua a brincar de moldar criaturas de todos os tipos, gêneros, tamanhos, formatos e cores. 

Na corte, o bando de nobres tolos continuam entregues aos seus esportes prediletos: festas, jogos e cobrança de impostos. 

O jovem artesão, após um dia exaustivo de trabalho no sótão da cabana, esquece o telescópio e as anotações. Apaga o candeeiro, desce à sala… Suas criaturas o saúdam. A cada um dispensa um gesto de carinho, um beijo, um abraço… Embora o sorriso não lhe saia do rosto, traz os olhos cansados. Coloca um pouco da sopa num prato, mas tem o pensamento noutro lugar. Levanta-se, vai até uma escrivaninha e vasculha planos… Planos para criar sua obra-prima. 

Na janela, olha o céu, destaca uma constelação, alcança uma galáxia, um sistema solar, um planeta, um campo, uma cabana, um laboratório cujas paredes e móveis estão cobertos de livros, manuscritos, planos e instrumentos. 

O menino-homem-que-foi-criado-do-barro-que-veio-do-céu não é mais barro, nem menino, tampouco homem… É um raio de luz que, transformado em pedra, cai no parapeito de uma janela enorme e ali fica a observar uma moça reduzindo a pó fragmentos de rocha.