sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

a história do bem viver

 

O Mazzini Moribundo, Silvestro Lega, 1873



foi uma vez

pras bandas do oriente

era uma tribo de criadores de cabras

cujo pai de todos adoeceu…


sem esposa que lhe cuidasse

(se esquecera de casar outra vez)

à espera da hora final,

desaparecia sobre o leito


na sombra do meio dia fatal

os descendentes, reunidos em torno dele,

ansiosos para ouvir quem tomaria seu lugar

(cada um a querer pra si a honra

de comandar os destinos do clã)

e herdar uma montanha de bens

passíveis de serem trocados por prazeres


antes do último suspiro, o ancião

lembrou moribundo

que ao comunicar sua condição

a todos os filhos e filhas

recebeu a mesma resposta: se cuide!

mas apenas um devolveu:

posso ajudar em alguma coisa?


chamou pra si a mão daquele filho

a abraçou sobre o peito,

e antes que sumisse para sempre,

deu-lhe o anel da família

sussurrando o segredo

da história do bem viver e cuidar.


 

sábado, 16 de dezembro de 2023

reflection under virus

 

Vírus, Isabelle Pop, 2020




eu, poeira de estrelas

continuo local…


meu vizinho fala tanto

que desperta a solidão do cosmo.


e meus amigos, com razão,

preferem amenidades culturais

(nada que comprometa

a despedida após o porre)

- um abraço, tchau e pronto!


minha memória perdeu o tesão nas sinapses

e me preocupa ter esquecido do futuro...


porque ando a apreciar ratos

que invadem o quintal,

multiplicados tantos…


pesquiso um raticídio e estremeço:

meu medo não é fácil de exterminar.


o que será dos gatos,

dos manguitos que despencam,

da árvore moribunda que cresce ao lado

e acumula uma montanha de folhas mortas?


preciso de uma estratégia

para o descarte do lixo

e que me deixe fora dessa equação.



sábado, 9 de dezembro de 2023

Deus não tem sentimento

 

Paulo Laurindo, 
Colagem sobre detalhe de A Criação de Adão (de Michelangelo), 2023



um amigo me mandou um clipe

da ária Erbarme dich, mein gott

cuja letra é bem curta:

"Tende piedade, meu Deus

Por causa das minhas lágrimas!

Vede aqui, coração e olhos

Choram amargamente diante de Ti

Tende piedade, meu Deus"


o poema é mínimo, apenas cinco versos

mas a melodia atinge os confins do Universo…


se Deus fica indiferente

e mudo

diante do engenho e da beleza humana

que Johann Sebastian Bach

(o cravista da Thomaskirche -

igreja luterana de Saint Thomas, em Leipzig)

usou para criar o oratório

A Paixão segundo Mateus

onde O reverencia e exalta,

não temos porque reclamar do Seu silêncio

diante das milhares de vítimas

do ódio

perpetrado pelos defensores da pátria,

da família, da religião e da propriedade


Tal qual a Natureza

Deus não tem sentimento