A Morte de Marat, Jacques-Louis David, 1793
Duda
formou-se em Educação Artística. E foi dar aula.
–
Professor,
na minha opinião, arte é coisa de viado. A classe desabou na
risada. Era assim, quase todo dia.
Em
casa não era diferente. O pai o queria advogado, médico ou
engenheiro… a mãe sonhava-o padre… as tias e as irmãs bem que
queriam vê-lo vereador, talvez prefeito… Era um garoto esperto,
todo mundo falava: vai ser grande na vida!
A
cigana que o jogou contra a parede do Cine São Luiz, em plena rua do
Comércio, vaticinou, numa tarde maio, que enfrentaria tudo e todos
mas terminaria coberto pela fama.
Desacreditava
do destino mas na cigana acreditou. Faria a diferença, sim senhor.
Saiu da casa dos pais, alugou um apartamento, evitou ao máximo a
convivência familiar e se lançou a pesquisar o folclore, incentivar
os jovens a olharem para o passado com reverência e, quem sabe,
obterem meios de alcançarem uma expressão artística, e por via de
consequência uma postura ética. Afinal, considerava a experiência
artística o suprassumo da existência humana.
E
decidiu começar sua jornada investigando aqueles que, sem quaisquer
referências, conseguiam se expressar com autêntica beleza… Se
envolveu com os folguedos, as danças, o teatro mamulengo, os
cantadores, os repentistas, a literatura de cordel… Tornou pra si
familiar aquele universo, vivenciou aquilo que o povo, movido apenas
pela necessidade de se entreter, produzia encanto suficiente para
abrir as portas da percepção e alcançar o inusitado, o inusual, o
estranho… Encontrou um meio de sair do seu mundinho cotidiano de
contas a pagar, guiado por uma moral mesquinha e foi adiante,
repleto de possibilidades, perspectivas, aceitação e, sobretudo,
alegrias.
Porém,
por ainda viver cindido entre a rejeição e a comunhão, e ansiando
a soma, a multiplicação, abriu as portas do seu refúgio (e do seu
coração) a quem quisesse compartilhar da sua utópica visão
prazerosa de estar no mundo. Juntou uma meia dúzia de iguais.
Contudo,
boas
intenções são vigiadas de perto por
vermes. E quase
como um mantra, nesse
mundo de prazeres sofridos e escassos, eis
que nosso protagonista é
alcançado, numa
tardinha de
sábado (de
olho no
domingo de
praia com uns chegados, boa conversa, comida farta, leõezinhos…),
por um flerte fácil, tenro… Superficial, mas aveludado.
Na
madrugada, a
polícia civil foi acionada por
um
vizinho que
estranhou
esquisito
zunzunzum… Duda
fora encontrado estrangulado,
apunhalado
sete vezes e
o coração arrancado.
Ao
meio dia, quando a família chegou, todo o acervo acumulado pela
vítima, ao longo de seus tantos anos à frente da Diretoria de
Cultura Popular do Estado, foi transformado em lixo, queimado,
esquecido.
Um
amigo
conseguiu
chegar a tempo de
salvar
algumas peças e ouvir, entre
resmungos e
imprecações
a
sentença do pai:
-
Arte
é coisa de viado. Foi
ela
que fez do meu filho um invertido,
disse,
mutilando
uma
das telas naif
que o filho exibia
no centro da sala, repleta
de máscaras, fotos e estantes apinhadas de livros. Tudo
inútil, nada
o salvou…