Em 3070, um grupo de arqueólogos encontraram, nos Arquivos Gerais do Estado, desprovido de qualquer catalogação, o documento que reproduzo abaixo. Quem o escreveu, a quais objetivos e interesses ele servia, perguntaram-se os cientistas diante de uma montanha de incertezas. Três anos após a descoberta, alguns consideram a possibilidade daquilo ter sido uma brincadeira de algum servidor numa crise de tédio em uma repartição. Outros afirmaram que, se brincadeira, era de muito mau gosto. Mas, dado que toda polêmica se torna obsoleta quando surge um novo fato capaz de galvanizar a opinião geral, o documento acabou esquecido em alguma gaveta, em razão do divórcio de um casal de celebridades da cena artística. E assim passou mais um século, até que num belo dia surge, nas redes sociais, um vídeo com um gaiato lendo, do alto de um púlpito, para uma plateia ruidosamente descontrolada, um texto que, jurava de pés junto, ter sido ditado a ele, numa tarde reflexiva, numa grama verde, debaixo de uma árvore frondosa, de sombra amena e bons frutos, por uma entidade divinal criadora de tudo e de todos. Sabendo que direito autoral é extinto setenta anos após a morte do autor, e que o conteúdo deste documento é tão absurdo que somente poderia ter sido escrito numa época de barbárie e ignorância (condição política impraticável no século XXIII, afinal a consciência humana atingira níveis extraordinários possibilitando a resolução de todos os problemas sociais) impossível levantar-se contra o sujeito acusação de furto, roubo, apropriação indébita ou qualquer ilícito do gênero. Contudo, o documento e o episódio nos alerta que é preciso ser forte, manter as barbas de molho e a pulga sempre atrás da orelha, já que o bom senso nos avisa que loucos e doidos os há até no paraíso. Segue o texto...
MANIFESTO PELA MORAL, BONS COSTUMES, COM DEUS ACIMA DE TUDO E DE TODOS
Em tempos de verdades, nuas, cruas e bestiais, praticamos uma política descaradamente sem vergonha, sem freios, papas na língua ou controle de qualidade… portanto, para uma sociedade livre de maricas, propomos:
- Dividir o mundo entre o bem e o mal e nos fixarmos acima dos dois com uma boa margem de segurança;
- Inventar diariamente um bode expiatório e colar nele a pior imagem que temos de nós mesmos;
- Atacar alguns pornograficamente, e defender desavergonhadamente outros;
- Demonizar as minorias;
- Nunca brigar diretamente nossas brigas, ter sempre uma tropa de jagunços para dar um fim na questão;
- Culpar sempre a vítima;
- Terceirizar a morte de, pelo menos, um prejudicado por dia;
- Humilhar os sobreviventes, sem trégua e sem remorso, até que desistam de si e passem a acreditar que, longe de nós, não há salvação;
- Disseminar ódio e nojo a tudo que for singular, diferente e/ou divergente;
- Jamais dar satisfação a quem quer que seja, afinal nossa liberdade é sagrada e ninguém paga nossas contas;
- Manter e aprofundar o sistema de classes e a isto chamar de meritocracia;
- Transformar em virtude tudo o que em nós for banal, venal e/ou imoral;
- Ter sempre à mão uma mídia que infantilize e imbecilize o maior número de mentes disponíveis;
- Sempre que formos flagrados em malfeito, apontar imediatamente o malfeito de outro;
- Fazer de um tudo para destruir o estado sem que isto nos impeça, no entanto, de tirar dele o máximo proveito;
- Explorar, mas explorar muito, sem deixar de acusar os explorados de preguiçosos, vagabundos e indolentes;
- Jamais assumir nossa torpeza ou nossos erros de português, porque o segredo do sucesso está em acreditar piamente na própria mentira;
- Jamais viver sozinhos nosso próprio inferno… dar um jeito de compartilhá-lo com o maior número possível de sujeitos.