sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O nascimento do mundo

 

Kipper, ilustrador gaúcho


No começo só havia energia vagando na escuridão do espaço infinito.

Então, veio a luz e dela surgiram o Pai Céu e a Mãe Terra.

Céu e Terra tiveram muitos filhos, dentre eles a Água, o Vento, a Guerra e também Nada - coisa nenhuma.

Pai e Mãe viviam num perpétuo abraço de amantes.

Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos.

Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

Vamos matar Céu e Terra – disse Guerra. - Não! gritou Floresta. – Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Floresta, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés na Terra e encaixou os ombros no Céu e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram. Mas que decepção! Só um pouco de luz alcançou os filhos. Além disso, Céu e Terra estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Floresta cobriu o pai com o manto negro da noite e para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela Água fez ondular os mares e os rios e Vento soprou uma brisa nos cabelos da mãe para alegrá-la. Só Guerra não ajudou, porque, nesta hora, estava criando os seres humanos para tomar conta do mundo. 

Olhando lá de cima os lindos trajes da amada, Céu ficou doente de inveja e sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado numa dobra do manto paterno, Nada chorava e chorava por não ter sido útil aos pais e aos irmãos.

Para que ninguém percebesse suas lágrimas, as escondia em cestas e mais cestas. Mas Floresta tudo percebera.

- Zero, meu irmão, preciso de sua ajuda.    

Nada tenho para dar, você bem sabe.

Ora, você tem tantas cestas

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Nada abaixou a cabeça, envergonhado.

Floresta avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados.

As lágrimas de Nada haviam se transformado em crianças-luz - as estrelas.

Nada, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhinhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai.

Nada concordou e colocou as duas cestas dentro de uma canoa.

Floresta a conduziu até alcançar o Céu e espalhar sobre seu manto milhares de estrelinhas que riem e piscam umas para as outras o tempo todo.

Quando Floresta ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem.

E foi assim que se formou a Via Láctea. 

Da canoa que Floresta deixou no espaço celeste nasceram os guardiões das estrelas - as constelações.

Adaptação de lenda Maori



sábado, 12 de agosto de 2023

dor e cura

 

John Jacob Niles, Doris Ulmann, 1930


 

tantas vezes
tive que saltar fora
para alcançar o verso
que mantém a prosa

oh, as dores que enxotam...
dores que exilam -
as trago todas em mim

cicatrizai estes versos em mim 
oh dores, que me tardam
que sei tão pouco
dos gozos que me habitam


 

sábado, 5 de agosto de 2023

paradoxo

 

The Perfect One, Christo Coetzee, 1994


 

olhe em volta:

chove, venta, faz sol, frio... tranquilo

ambiente previsível

 

a mente não, a mente destrambelha

organiza, dá sentido, nomeia e determina

verdade, mentira, ficção e realidade

 

lotada de demônios, medos e incertezas

não para, não descansa

adoece e cura, oscila

lamenta e chora, entre vida e morte

reza, ora, clama

faz de conta que é natural

verdadeiro e real

tudo que pensa e dilacera...

 

não há quem ou quê

nos salve da mente...

a não ser ela própria