sábado, 28 de setembro de 2024

A história

 

History, Edvard Munch, 1915


Ouvi de Rigot. Fim de tarde plácida com promessa de noite fria. Cafezinho fumegante no sujinho do Largo do Paissandu (nem tchun para a hora). Era um estica conversa até que os afobados tivessem se enfurnado lá sabe-se onde e um lugarzinho pra sentar no coletivo pintasse pra nós a caminho de casa.

E disse mais. Que foi Chexa – alagoano falador, pleno de mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, numa birosca à beira da Lagoa Mandaú – quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca do mui admirado doutor Diógenes.

Bem podia ter sido produto do consumo de algo com alto poder alucinógeno, acrescentei quase queimando a língua. Assoprei. A gente sempre coloca algum tempero, uma pitadinha de não sei quê àquilo que, a troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que quem a conte consiga nos inundar de verossimilhança. A loucura mais improvável deve ter motivo e consequência o mais familiar possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história pouco importa. Importa mesmo como é contada.

Minha observação não afetou em nada meu velho amigo, envolvido estava em afastar uma mosca que festejava migalhas no canto da sua boca. Mas a mosca era só um pretexto para justificar sua agonia ao falar de fogo fátuo, vento terral, lágrimas de fogo caindo do céu suave e lentamente numa noite memoravelmente tormentosa. Cada detalhe daquele conjunto me deixou desconjuntado.

Rigot não era do tipo de seguir uma lógica linear, da causa pra consequência… Ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, quase sempre perdia boa parte da sua narrativa. E como tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras narrativas era quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma garantia  de retorno. E lá me ia envolvido em embaraços, medos atávicos, assombrações e metáforas. 

Quem era esse tal de doutor Diógenes? Um mago, um bruxo, um curandeiro, um taumaturgo? Rigot disse, sossega, vamos andando que até o meio da Consolação... Vais compreender o ponto de chegada. Tinha investigado. E então? Continuou seu enviesado relato com visível esforço no sentido de tranquilizar-me: doutor Diógenes, disse Chexa, foi-me apresentado na praça do Mercado. Distribuía entre os mercadantes, toda segunda, quarta e sexta ouvidos, auscultações e receitas em troca de bacia de verduras, bandas de melancia, meia dúzia de ovos, meio litro de feijão, um capão… Não que precisasse, precisava não. Simplesmente aceitava e agradecia. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.

Um altruísta que sabia contar histórias. É só? O que quero saber é o porquê ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado pela impaciência por não entender o fato de termos esquecido de pegar o ônibus e minhas panturrilhas estarem em petição de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam, rangeu Rigot. E gostavam, ora! Tanto que repetiam sua história e ai daquele que tentasse mudar uma vírgula – caíam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam. O que tem…? Tentei adiantar-me no que fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do Belas Artes e cada um poderá seguir pro seu lado. Já no fim da vida, doutor Diógenes, preocupado 1) com aquela aceitação inconteste da sua única história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por dever de ofício ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns, clichês e cânones, decidiu mudar este estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a mesmíssima história só que para um, modificava uma frase, pra outro variação da paisagem, àqueloutro uma entonação, uma pausa… 

E assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se múltiplas e a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo inédito e repassasse até que restou difícil saber qual teria sido, de fato, a história original.


 

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