sábado, 27 de julho de 2024

O moquém

 

Devorando o inimigo, Theodore de Bry, 1592



Saído da cidade grande, invadi uma casa, no litoral alagoano, no alto do mais baixo de três montes – cerca de 15 quilômetros do centro da cidade. É outra coisa poder enxergar o horizonte.

Já no primeiro dia, um susto: todos pareciam me conhecer. Você é o pai de…? A maioria acenava a cabeça em um cumprimento cordial, enquanto outros preferiam o formal bom dia, tudo bem? Penso ter encontrado uma velha família de infância. O difícil é associar meu parentesco.

Na pequena rua, todos remediados, uns mais que outros. Carros, motos e bicicletas são comuns; crianças na escola – ônibus para levá-los e trazê-los; mulheres trabalhando fora; coletivos com horário marcado; comércio em ascensão e a perspectiva de uma praça com quadra de esportes e creche para os pequenos…

Da janela dedico horas ao futuro. Vez por outra puxo conversa com alguém, informal, sem muita consequência.

O uniforme predileto é camiseta, bermuda e sandálias. Os mais antigos ainda permanecem descalços, apenas um surrado calção a lhes cobrir as partes. Me vem à lembrança os Caetés, aqueles que assaram e comeram o Sardinha… Sonhei noite dessas ao moquém (para alegria das velhas e moças que atiçavam os pequenos a remexer, com varas, as brasas debaixo de mim)... Dava pra ouvir a voz dos guerreiros a gritar contra um atrevido que arriscava pegar um pedaço da minha orelha antes que fosse provado que a carne do caraíba não era venenosa… Os mais fortes garantiam para si as melhores partes e deixavam pra lá os intestinos e a cabeça… No meio do sonho matutei: a quem caberia meu cérebro? (Esta é a parte que considero mais importante na estrutura do meu ser – aos cachorros não!)… Os olhos ardendo pela fumaça, narinas entupidas pelo cheiro forte da carne queimada: se o velho Sardinha prestou um grande serviço à Pindorama cedendo a sua ilustradíssima massa cefálica ao deleite de alguma moçoila com olhos de cigana dissimulada… Seria eu também uma espécie de salvação da pátria? Quem, dentre a gente que me acolheu, apreciaria o sabor do meu conhecimento escolástico, da minha visão holística do mundo, minha capacidade de desenterrar segredos nas profundezas da alma humana?…

Mexo e remexo minha modesta biblioteca à procura de títulos que possam me fazer lembrar porque cheguei aqui e o que virá em seguida. Mas aí, livros só leio quando alguém próximo menciona. A mesma coisa com filme, peças teatrais, exposições… Procuro me guiar pela não-moda. Se acaso sinto que o risco de perpetuar o sistema que fatura em cima das nossas carências e desejos, dou um basta e parto pra outra. Leio e assisto aquilo que considero out, mesmo que seja uma porcaria. Já tive a sensação de que era um dos poucos a participar da mensagem, o que me dava autorização para propagá-la da melhor maneira. E isso ajudou a consolidar a minha fama de rebelde.

Mas isto não explica porque cheguei a esta casa de dois pisos com a promessa de povoar um apêndice com vista exclusiva para o mar (me arrepia pensar na possibilidade dalgum especulador imobiliário bloquear a preciosa vista)… Andava eu à procura de um lugar onde pudesse finalizar a história que ainda nem comecei… E nem sei se um dia haverei de começar… Se é que tenho algo pra contar, além de fracas impressões, lampejos e cenas curtas sem começo nem fim e às vezes sem pé nem cabeça. Certamente assim, jamais irei ao moquém.


 

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