Era uma vez o dia em que pensei: porque estamos sempre a adiar a hora de dizer, com relativa fidelidade, quem somos de fato.
Fui uma criança de certo modo isolada, morava numa casa velha, recuada, numa rua abandonada em cujo quintal em declive havia um imenso e frondoso capinzal.
Perto da porta da cozinha vivia um magro pé de pinha. Sossegado, mas de gênio muito forte. Dava pra sentir e ver que era um pé de planta rebelde, cioso da sua própria liberdade: produzia apenas um fruto por vez, caso tivesse vontade.
Numa dessas manhãs costumeiras, tal qual qualquer criança envolvida com suas artes, dei pernas a um projeto de me tornar, sem dúvida, lambança ou excentricidade, um homem das cavernas.
E foi assim que, com ajuda de uma colher, cavei um solitário buraco com fundura suficiente para acomodar alguns teréns que julguei necessários ao meu conforto: um lençol rasgado, um caixote velho e uma encardida panela.
Satisfeito, acreditei que viveria ali para sempre ou, eventualmente, pelo tempo em que ficasse de mal com mainha.
Após alguns segundos percebi que o buraco era por demais achatado, não me cabia nem mesmo agachado… Mas, embora o lugar fosse mal-ajambrado, improvisei uma cortina com um pedaço de uma velha toalha de plástico para me separar do mundo onde me sentia clandestino.
E ainda hoje me vejo, sentado no meu trono adotivo cercado por aquela terra amarela – um lar e um reino.
Mas um pensamento tagarela me assaltou: viveria do quê? Rio e mar não haviam por perto… Então seria caçador sem dó nem piedade, abateria bicho voante, rastejante e roedor – era isso ou morrer de barriga vazia todo dia antes de dormir.
Sorte minha que trouxera um estilingue e lá se foi uma avezinha que fizera ninho do pé de pinha… Uma pedra arremessada, certeira, acertou-lhe a cabecinha. E havia uma panela. Fogo não foi problema e logo, com auxílio da água da pia e um pouco sal surripiado do pacote no alto da prateleira, meu almoço pré-histórico estava pronto – foi um tantinho de nada (e nenhum prazer senti).
Garanto, a experiência não foi legal. Esperava mais. Estava exausto e com fome: trabalhara muito por tão pouco.
Já havia desistido antes de várias empreitadas e não foi difícil jogar fora essa minha breve ideia de vida neandertal.
Regressei à casa, acostumado e pesaroso à prosa silenciosa que mantinha com o ambiente do meu quarto. O tecido esvoaçante que se fingia de porta, as telhas gotejantes e o uivo do assombroso do vento embalavam minha esperança de um dia ultrapassar o temor, a ansiedade, a aflição e a incerteza de tornar-me o personagem que hoje sou.
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