sábado, 4 de novembro de 2023

Nascido para morrer

 

A Morte de Marat, Jacques-Louis David, 1793


Duda formou-se em Educação Artística. E foi dar aula.

Professor, na minha opinião, arte é coisa de viado. A classe desabou na risada. Era assim, quase todo dia.

Em casa não era diferente. O pai o queria advogado, médico ou engenheiro… a mãe sonhava-o padre… as tias e as irmãs bem que queriam vê-lo vereador, talvez prefeito… Era um garoto esperto, todo mundo falava: vai ser grande na vida!

A cigana que o jogou contra a parede do Cine São Luiz, em plena rua do Comércio, vaticinou, numa tarde maio, que enfrentaria tudo e todos mas terminaria coberto pela fama.

Desacreditava do destino mas na cigana acreditou. Faria a diferença, sim senhor. Saiu da casa dos pais, alugou um apartamento, evitou ao máximo a convivência familiar e se lançou a pesquisar o folclore, incentivar os jovens a olharem para o passado com reverência e, quem sabe, obterem meios de alcançarem uma expressão artística, e por via de consequência uma postura ética. Afinal, considerava a experiência artística o suprassumo da existência humana.

E decidiu começar sua jornada investigando aqueles que, sem quaisquer referências, conseguiam se expressar com autêntica beleza… Se envolveu com os folguedos, as danças, o teatro mamulengo, os cantadores, os repentistas, a literatura de cordel… Tornou pra si familiar aquele universo, vivenciou aquilo que o povo, movido apenas pela necessidade de se entreter, produzia encanto suficiente para abrir as portas da percepção e alcançar o inusitado, o inusual, o estranho… Encontrou um meio de sair do seu mundinho cotidiano de contas a pagar, guiado por uma moral mesquinha e foi adiante, repleto de possibilidades, perspectivas, aceitação e, sobretudo, alegrias.

Porém, por ainda viver cindido entre a rejeição e a comunhão, e ansiando a soma, a multiplicação, abriu as portas do seu refúgio (e do seu coração) a quem quisesse compartilhar da sua utópica visão prazerosa de estar no mundo. Juntou uma meia dúzia de iguais.

Contudo, boas intenções são vigiadas de perto por vermes. E quase como um mantra, nesse mundo de prazeres sofridos e escassos, eis que nosso protagonista é alcançado, numa tardinha de sábado (de olho no domingo de praia com uns chegados, boa conversa, comida farta, leõezinhos…), por um flerte fácil, tenro… Superficial, mas aveludado.

Na madrugada, a polícia civil foi acionada por um vizinho que estranhou esquisito zunzunzum… Duda fora encontrado estrangulado, apunhalado sete vezes e o coração arrancado.

Ao meio dia, quando a família chegou, todo o acervo acumulado pela vítima, ao longo de seus tantos anos à frente da Diretoria de Cultura Popular do Estado, foi transformado em lixo, queimado, esquecido.

Um amigo conseguiu chegar a tempo de salvar algumas peças e ouvir, entre resmungos e imprecações a sentença do pai:

- Arte é coisa de viado. Foi ela que fez do meu filho um invertido, disse, mutilando uma das telas naif que o filho exibia no centro da sala, repleta de máscaras, fotos e estantes apinhadas de livros. Tudo inútil, nada o salvou…


 

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