sábado, 25 de junho de 2022

infimidade

 

Templo dos Dez Mil Budas, Hong Kong


uma vez disse a um amigo

que não suportaria

um ente querido morrer antes de mim,

sofreria muito,

preferiria ir primeiro…

ele, espantado, me olhou nos olhos e respondeu:

que pensamento egoísta

pois desejo ser o último a partir

quero que, enquanto puder,

na última despedida dos meus

seja minha a mão a dizer adeus


demorei para compreender essa lógica

mas ponderei: - já pensou?

quando me apartar

em vez de solidão e vazio

ser saudado por todos

que, alegre, saudamos no partir


e este passou a ser o meu mantra

não me preocupar com a partida

afinal – eis o meu conforto

imaginar que há sempre alguém a nos saudar e honrar


não trato aqui de religião

não frequento culto

tampouco trabalho para erguer igrejas

apenas me presto a encontrar amigos

no sagrado templo eventual de um bar

onde, naturais, fazemos libações

cantamos a existência

e saudamos a viva alegria de ainda estarmos aqui

a testificar um instante

um tantinho de memória

uma nesga de lembrança

na santidade dos amados que partiram

sem jamais mencionarmos que morreram


por isto, digo: no dia em que me for

por favor, camaradas, façam alarde

se enfeitem, cantem, dancem,

comam, bebam, gargalhem

dêem vivas, gritem hurra

vossa alegria há de expurgar os meus defeitos

e fazer germinar virtudes

jamais sonhadas

pois eu, átomo,

invisível e silencioso

ao me juntar à vastidão do universo

serei mais ínfimo do que sou agora


 

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