Dissemos um ao outro: vamos viajar, sem volta! Era um tempo duro, suado, nada de dinheiro fácil, havíamos de economizar. Ao contar tostões alcançamos suficiente para comprar a passagem mais barata num daquele ônibus pirata. Aí justifiquei: luxar pra quê, se desta vida não se leva nada? Além disso, é uma aventura, sem pressa para chegar a algum lugar, viagem de curtição, com paradas aqui e ali, tempo de sobra para curtir a paisagem.
Ficara bom nesse negócio de inventar desculpas para não fazer a coisa certa. Mas o que sabia eu da coisa certa? Naquela longa época tinha muito poucas ideias. Sobrava o que eu sentia e pronto…. apesar dos protestos e das advertências (que não ouvia e se ouvia não entendia).
Juntamos as trouxas… só não juntamos as escovas porque aí seria nojento e não estávamos a fim de ser chamados de hippie ou, pior, comunistas… e fomos para o ponto, aguardar a embarque.
Não invento: o local estava tomado de gente. E chegava mais e mais. Uma horda do tipo retirantes e nós iguais. Porém, apenas eu e ela havíamos combinado partir para aquele lugar algum.
Procurei-a para confirmar, mas envolta pela multidão começara a se afastar cada vez mais. E esta constatação jogou-me num abismo: sabia de fato o significado da partida?… qual o ônibus?… qual a companhia? Em meio a esse frenesi, percebi que havia começado a perder a noção e a lembrar que esquecera de perguntar ao vendedor se o ponto era aquele mesmo e o qual o horário de partida?
Minha derrota foi presumir que ônibus, todos eles, passam pela mesma estrada, a estrada na qual me encontrava. E se era assim, melhor acalmar: o ônibus que me (nos) levaria apenas de ida a algum lugar, a qualquer momento pararia bem ali, no ponto em que estava, envolto por esta multidão que me desconfortava e aumentava a distância entre eu e aquela… mas, onde estaria agora?
Presumi além da conta. Minha esperteza deu chabú. Desesperado, procurei o número telefônico da empresa… queria alcançar o setor de informações… mas, nada, nada trazia nos bolsos além de um contrato manuscrito em chinês tradicional em quatro folhas de papel almaço. Traição!
Havia sido traído. Mas calma: fora eu meu próprio traidor. Qual o quê? Tentei abrir espaço entre as gentes, buscando alívio. Queria falar com ela, prometer em alto e bom som que iria ressarci-la mas meu esforço se mostrou vão e paradoxal: cada vez que buscava me aproximar, mais ela se afastava e mais eu me afastava do ponto em que deveria embarcar no ônibus que nos (me) levaria a algum lugar e a multidão em volta não dava a mínima para qualquer movimento que eu viesse a fazer, abarrotado de tralhas em louca disparada, através de ruas, vielas, becos, solos e subsolos – em busca de encontrar o guichê onde havia comprado a passagem mas desembocara num mundo onde a verdade ia ficando cada vez mais inacessível.
Impossibilitado de alcançar, quis gritar, xingar, maldizer… lágrimas ansiosas de liberdade vieram em meu socorro. Larguei mão, abri as comportas do desespero e do alívio. Busquei refúgio no primeiro templo que encontrei pela frente. O sacerdote não se deu ao trabalho de responder minha indagação convulsiva sobre o que estava acontecendo? Condescendente, me ofereceu um lenço branco que acabei por esquecê-lo no bolso de uma velha calça nos anos que se seguiram.
Reparem: esta é uma estória de fraqueza. Não lhes contei aquilo que escapa por não buscar os instrumentos que me permitissem entender o que precisava entender. Tudo que acabei de narrar foi uma pequena tentativa de contextualizar um mero sonus convulsus: pesadelo, que tem me torrado a paciência cada vez que lembro dele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário