sábado, 8 de fevereiro de 2020

O Paraíso Deserto



Cosmic Map, Bruno Munari, 1930




João da Silva Guimarães, mestre de campo, encarregado de desbravar o sertão baiano, está velho, cansado e delirante. Passa o tempo rememorando suas andanças em busca de ouro e prata para a coroa portuguesa.
No fim da jornada, tem como propósito escrever uma carta para El Rei (e estamos falando aí de algo por volta de 1760 e alguma coisa) onde narrará as aventuras de Belchior Dias Moreira, o Muribeca (Mosca Chata), filho de Diogo Alvares Correia, o Caramuru (Moreia, em tupi) com a cunhada Moema (Abençoada), irmã da sua esposa Paraguaçu (Mar Grande). Será uma história ouvida de várias vozes de um cem números de gentes, cujo título já tem pronto: Relação histórica de uma oculta, e grande povoação antiquíssima sem moradores.
Mas como a terra gira e a lusitana roda, a missiva, se chegar a ser escrita, ficará conhecida apenas Documento 512. E ficará arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a espera de que, um dia, alguém a decifre. Porque ali estará firmado, com todas os símbolos e letras, que Muribeca saberia da existência de uma tribo desconhecida que exibia lindos enfeites dourados e prateados. Que, após muitos obstáculos e revezes conseguiu chegar a uma montanha cintilante, coberta de cristais. Que daí seguiu por uma estrada de pedra, passou por dentro de uma montanha e, finalmente, através de um caminho pavimentado, chegou a uma grande cidade onde, na entrada, havia três arcos (um central, grande; dois menores nas laterais) com inscrições grego ptolomaico (?). Que reparou que as casas eram todas iguais e interligadas. Algumas tinham mais de um andar. Que na praça central, havia uma enorme estátua, em pedra preta, de uma figura despida da cintura para baixo, com a mão esquerda sobre o quadril e o braço direito estendido a apontar para o Norte, trazendo na cabeça uma coroa de louros. Que ao lado da praça, corria um rio que desembocava numa cachoeira rodeada de tumbas e que, neste exato local, Muribeca encontrou uma moeda de ouro, que trazia, numa face, o relevo de um rapaz ajoelhado e na outra, um arco, coroa e flecha.
Envolto nesse mistério alucinante, João Guimarães se perguntava o que significava tudo aquilo? E via a si na estrada de pedras, entrando na montanha dos cristais, atingindo o caminho pavimentado e chegando aos três arcos na entrada da grande cidade… completamente em ruínas… mas não enxergava vivalma. E beirando o rio que beira a praça, chega à cachoeira, às tumbas, ao local onde Muribeca encontrou a moeda
Súbito, já se vê às margens do Rio Paraguaçu cumprimentando seu companheiro João Gonçalves da Costa que, a mando do governador da capitania, Manuel da Cunha e Menezes, estava dando guerra aos elegantes Mogoyóis em busca de ficar pé naquelas brenhas sertanejas do que um dia seria o estado da Bahia. E ali, sem qualquer reparo ou remorso, os dois articulam um plano infernal: promover uma festa, em honra dos nativos e após embriagá-los, mata-os todos. Desta forma nasceu o arraial da Conquista, mais tarde batizada de Vitória da Conquista, terra onde este narrador que vos fala tem um vago nome e escutou, certa feita, do mestre cantador Elomar esta singela estrofe:
Depois, depois de muitos anos
Voltei ao meu antigo lar
Desilusões que desenganam
Não tive onde repousar
Cortaram o tronco da palmeira
Tribuna de um velho sabiá
E o antigo tronco do oliveira
Jogado num canto pra lá
Que ingratidão pra lá

Por que a gente insiste em voltar? Porque há sempre o retorno. Porque havemos de ver o que poderia ter sido. Porque o mais grave de tudo é a gente esquecer. Isto fui eu quem disse, porque o João da Silva Guimarães, em meio a carnificina programada, vê surgir o Muribeca, com um mapa nas mãos e larga pra lá aquele mundaréu de corpos mutilados, aquela sangueira tingindo as árvores e o segue… pelo caminho das pedras, por dentro da Montanha dos Cristais até a entrada da grande cidade deserta.
Não entendo, para onde foram todos?
Talvez tenhamos errado nalguma dobra do caminho…! Respondeu João Magalhães, sem evitar de pensar em como contar esta história a El Rei sem que desse prova de estarmos todos loucos? Mas teve que interromper sua dúvida porque o Muribeca já insistia em rumar a conversa para outra banda
De que adianta o paraíso se não há gente pra olhar?



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