sábado, 31 de agosto de 2019

Fábula Anônima


Nature morte à la racine et au cordage jaune
Le Corbusier, 1930



Era uma vez dois países separados por um rio, rápido, largo, perigoso, no qual muitos se afogavam ao tentar atravessá-lo.
Um dos países se chamava Felicidade, pois lá leite e mel fluíam das pedras. O outro, devastado pela preocupação e destroçado por brigas, era chamado Infelicidade.
Um dia, um homem, ao observar aquele meio, decidiu fazer algo.
– Esticarei uma corda de uma margem à outra. Mesmo que eu morra ao enfrentar os perigos do rio, não importa. No futuro, outros poderão apanhar a corda, atravessar o rio com segurança e atingir a Felicidade.
Encontrou uma corda, amarrou uma das extremidades em uma árvore, agarrou a outra ponta e mergulhou na correnteza, a lutar contra as ondas.
No meio da espuma e dos redemoinhos, caçadores confundem-no com um animal e atiram nele, ferindo-o mortalmente. Num último esforço, o homem atingiu a outra margem e, pouco antes de morrer, conseguiu amarrar a corda a uma árvore.
Pessoas que assistiram seu sacrifício, passaram a reverenciá-lo como um homem de coragem, dizendo:
– Ele morreu para nos salvar, portanto é digno do nosso amor.
E muitos passaram a render-lhe homenagens mas ninguém seguia seu exemplo por medo da morte.
– A água é fria e o rio tão largo… Grande é o perigo da travessia.
E no decorrer dos anos, a corda foi esquecida. Coberta de algas e de galhos, deixou de ser visível.
Porém, o culto ao herói sobreviveu: o povo construiu monumentos em sua memória, cantou hinos em sua honra e continuou evocando o seu nome. Vieram as gerações: a segunda, a terceira, a quarta… Oradores, cientistas e letrados falavam das virtudes do herói e contavam como que, morrendo, ele salvara os homens.
Mas nunca mais se falou da corda jogada por cima do rio. Tinha sido esquecida.
Os argumentos, os discursos e os ensinamentos dos sábios acabaram criando uma grande confusão. Oradores declaravam: Por que esta disputa? A única coisa necessária é adorar o herói e acreditar que ele morreu para nos salvar. Quando morrermos, entraremos sem dificuldades no país da felicidade. Se o nosso corpo nos proíbe, por enquanto, a travessia do rio, após a morte a nossa alma voará para o outro lado. O amor, a potência e a coragem do herói foram tão grandes que tudo o que pedirmos ao seu espírito ele nos concederá.
E o povo, ao ouvir isto sentiu uma alegria imensa e cobriu de honrarias os oradores.
– Grande é a vossa sabedoria, disseram as pessoas, vocês nos mostram um caminho fácil. É simples: adorar, rezar e solicitar ao nosso herói a salvação na hora da nossa morte. Agora, comamos, bebamos, sejamos alegres e aproveitemos da melhor maneira a nossa estada no lugar onde estamos.
Enquanto isso o espírito do herói contemplava o povo com tristeza, escutando as suas orações e súplicas. Todos haviam esquecido o principal: a ligação que havia entre um país e outro.
É que aquele povo perdera a chave que lhes permitiria compreender o gesto do herói. Estavam por demais acostumados a usar os olhos da carne em vez de buscarem enxergar com os olhos da alma. Ainda surdos, não conseguiam ouvir a voz do herói a clamar:
– A corda… A corda… A corda…



Nenhum comentário:

Postar um comentário