quando tudo pode ser dito

Ghost With Butcher Knife, Franz Sedlacek, 1934

“palavras que incentivam a negação do outro

são como balas perdidas:

encontrarão um corpo para perfurar”.

trecho do manifesto de psicanalistas

da escola brasileira de psicanálise

na matéria de Elaine Blum,

no site do El País-Brasil em 11.10.2018

quando tudo pode ser dito

a palavra perde o sentido

e armada

propaga o nada

semeia balas

facadas

pauladas

socos e pontapés...

quando tudo pode ser dito

a palavra perde o contexto

não existe fato

só pretexto

é quando um corpo perdido

interdita a alma

e destila e exala

esse recalcado ódio

desavergonhado ódio

essa pressa, esse atropelo

essa falta de educação

esse rancor

esse desrespeito

essa injúria

esse medo...

quando tudo pode ser dito

é quando a palavra dispensa

todo e qualquer convívio

é quando a frágil carne

arrogada agora em espírito

nada mais alcança senão

um fantasma – essa ressaca do instinto

quando tudo pode ser dito

a palavra vira canibal

e com os dentes rubros,

num ato de suprema estupidez

louca, despudorada

coberta de detritos

fétida

a renegar sua extinta humanidade,

a palavra se retrai

se rebaixa

se sonega

e soluça o vazio da sua fome…

porém, o seu olhar impossível

enxerga apenas a aridez de suas lágrimas

e aí, num misto de riso, grito e blasfêmia

a palavra acaba

por devorar cada sílaba

cada fonema de si mesma