sábado, 23 de dezembro de 2017

O sorteio

The State Lottery, Vincent Van Gogh, 1882



Batista foi pego com a mão na botija. Sentindo-se protegido pelo moletom de segunda doado pela patroa da mulher e pelo par de tênis, quase novo, encontrado no bazar da caridade do centro espírita siriús de nazaré, partiu para o hiper disposto a fazer seu menino se lambuzar de iogurte com mel. Vinha de olho, não era de hoje, naquela embalagem familiar exibida no panfleto promocional.

Para simular familiaridade foi logo cumprimentando o vigilante. Pegou um carrinho e rumou, sem pressa, para área das delícias. O moletom (um número maior que o seu) daria uma boa cobertura. Após demonstrar interesse em vários produtos, conferir-lhes o preço no verificador, balançar a cabeça várias vezes em sinal de reprovação, enfiou no bolso o litro e meio da gostosura, a repetir, pra si, que aquela atitude era legítima, mesmo sua apropriação ter sido considerada indébita pelo alarme tonitruante da loja. Detectada a falha, todo o aparato de segurança foi acionado. Um senhor que assistiu a cena comentou, orgulhoso, ao repórter da noite, que presenciara uma demonstração eficaz e imprescindível do sistema de repressão ao crime, logo interrompido pelo âncora que acrescentou: mesmo sendo o segundo maior consumidor dos recursos da empresa, perdendo apenas para a diretoria, a existência do departamento de prevenção ao crime encontrava-se plenamente justificada.

Algemado, amordaçado, encapuzado e bastante machucado, Batista foi levado aos fundos da loja. Lá, uma cela, com grossas grades de titânio, paredes de cimento armado com vinte centímetros de largura, ambiente blindado e totalmente fora de controle, o aguardava imersa numa penumbra estéril e fria.

Vivíamos sob vigilância de inúmeros exércitos particulares, todos com poder de polícia decretados logo após as últimas privatizações, a da água e do ar. Ao Estado, denunciado como o grande mal da civilização, cabia apenas implementar sua própria extinção. Dos antigos poderes, restava um quase nada do judiciário, o mínimo para fazer cumprir sentenças. Para essa justiça, fora criado um algoritmo que sorteava juiz, júri, promotores, advogados e meirinhos, todos remunerados com verbas exorbitantes destinadas a cada julgamento - que era único, espetacular e com vários níveis de apelações (o que ensejava um sem fim de recursos, possibilitando aos sortudos sorteados encomendarem suas casas de praia, a viagem dos sonhos ou funeral na lua). Absolvições existiam mas, somente nos casos de cleptomania devidamente atestados por uma dezena de psiquiatras forenses, todos particulares. Tudo corria dentro da mais estrita legalidade. A Constituição era bastante clara, os pais-legisladores foram econômicos e enfáticos: a inveja é pecado e toda cobiça será castigada. Acreditavam que quanto maior o ruído provocado pelos homens de bem, menos delinquentes e transgressores haveriam na praça. E, numa sociedade onde todos aguardam recompensa, alguém tem que pagar o pato, pois não existe almoço grátis. E naquela tarde, Batista caíra na malha fina.

O público esfregou as mãos; a bolsa deu um up; o dólar disparou, imediatamente estabilizado por uma alta significativa nas comódites; o desempenho satisfatório das aplicações em letras do tesouro baseada nas oscilações dos preços no varejo, elevaram o euro a patamares nunca vistos. Feitos os cálculos, computados os prejuízos futuros daquela nefanda ação e realizada uma ponderação entre as projeções dos diversos institutos quanto ao comportamento futuro dos mercados, foi em vão a luta dos desenvolvimentistas. Mais uma vez se viram derrotados pela pertinácia dos neocon’s (ala majoritária dos cabeças pretas do partido liberal conservador). Na quebra de braço secular entre a produção e o rentismo, mais uma vez, os progressistas levaram a pior. Especialistas alinhados vieram a público garantir que, levada em consideração premissas históricas da newsociology (doutrina científica baseada exclusivamente no senso comum) ao final tudo se ajeitaria em torno de uns 40% de valorização nas ações dos dois mais prestigiados laboratórios de dramaturgia, exatamente aqueles encarregados da educação de massa, presencial e à distância, nos três níveis básicos.

Apostadores soltaram na rede um vídeo-boato atestando a irrelevância do caso nº 10987B856/17, instruído na segunda vara de direito penal da capital. Colocavam todas suas fichas na hipótese de que tudo seria esquecido por volta da quarta ou quinta instância. Mas, tiveram que morder a língua e se, ainda estivesse na moda o uso de chapéu, teriam sido obrigados e comê-los. Aquele foi um espetáculo ímpar, durou década e meia para ser concluído. Gerou um volume assustador de apostas, milhares de petições, manchetes, artigos, teses, filmes, peças de teatro e uma infinidade de comentários na rede social, além de generosas e polpudas contribuições da indústria alimentícia para a construção de novos presídios.

Finalmente, às cinco da tarde daquela sexta-feira, ninguém voltou pra casa. Todos se prostraram diante de aparelhos televisivos - acontecia o julgamento da última apelação feita pela equipe de advogados da defesa. Sob escolta armada, vigiado por câmeras estrategicamente colocadas nos pontos nevrálgicos, acompanhado com baraço e pregação, o réu foi conduzido sob os olhares silenciosos da população até a presença do juiz- superior-e-supremo encarregado da leitura da decisão unânime do vigésimo quinto júri. Ninguém duvidava, Batista seria, em definitivo, declarado culpado. Como era de praxe, o magistrado nem chegou a desdobrar a folha de papel com a decisão. Tão logo, a sessão foi aberta com a pompa tradicional, ele anunciou a sentença: duzentos anos de trabalhos forçados, cumpridos em confecções de roupas masculinas.

A sociedade respirou aliviada. O crime fora punido, a justiça realizada e a vida seguiu. Porém, daí a poucos dias, já era visível o estado deplorável das pessoas. Possuídos por aquela melancolia característica, aquele ar blasé tomando conta das fisionomias… Continuar assim, tudo iria por água abaixo. O sistema não aguentaria tamanha apatia. Algo precisava ser feito. Alguém tinha que ser induzido ao crime. E, na calada da noite, o algoritmo sorteou.




Nenhum comentário:

Postar um comentário