The State Lottery, Vincent Van Gogh, 1882
Batista
foi pego com a mão na botija. Sentindo-se
protegido pelo moletom de segunda doado
pela patroa da mulher e pelo
par de tênis, quase
novo, encontrado no bazar da
caridade do centro
espírita siriús de nazaré,
partiu para
o hiper
disposto a fazer seu
menino
se
lambuzar
de iogurte com mel.
Vinha de olho, não era de hoje, naquela
embalagem familiar
exibida
no panfleto promocional.
Para simular
familiaridade foi logo cumprimentando o vigilante.
Pegou
um carrinho e rumou,
sem pressa, para área das
delícias. O moletom (um
número maior que o seu)
daria uma boa cobertura. Após
demonstrar interesse em vários produtos, conferir-lhes o preço no
verificador, balançar a cabeça várias vezes em
sinal de reprovação, enfiou
no bolso
o litro e meio da
gostosura, a repetir, pra si,
que aquela atitude
era legítima,
mesmo sua
apropriação ter sido
considerada indébita pelo
alarme tonitruante da loja. Detectada
a
falha,
todo
o aparato de segurança foi acionado. Um
senhor que assistiu a cena comentou, orgulhoso,
ao repórter da
noite, que
presenciara uma demonstração
eficaz
e imprescindível
do
sistema de repressão
ao crime, logo
interrompido pelo
âncora
que
acrescentou:
mesmo
sendo o
segundo maior consumidor dos
recursos
da empresa, perdendo apenas para a diretoria,
a
existência do
departamento de prevenção
ao crime encontrava-se
plenamente
justificada.
Algemado,
amordaçado, encapuzado e
bastante machucado, Batista
foi
levado
aos
fundos da
loja. Lá,
uma
cela, com grossas
grades
de titânio, paredes de cimento
armado com vinte
centímetros de largura, ambiente blindado e totalmente fora de
controle,
o aguardava imersa
numa
penumbra estéril
e fria.
Vivíamos
sob
vigilância de
inúmeros
exércitos
particulares, todos
com
poder de polícia decretados
logo após as últimas privatizações, a
da água e do ar.
Ao
Estado, denunciado
como o grande mal da civilização, cabia
apenas implementar
sua própria extinção. Dos
antigos poderes, restava
um
quase
nada do judiciário, o
mínimo para
fazer cumprir sentenças. Para essa
justiça, fora
criado um algoritmo que
sorteava
juiz,
júri, promotores,
advogados
e
meirinhos, todos
remunerados com
verbas
exorbitantes
destinadas a cada julgamento -
que
era único, espetacular e com
vários
níveis de apelações (o
que ensejava um
sem fim de recursos,
possibilitando aos
sortudos
sorteados
encomendarem
suas
casas
de praia, a
viagem dos sonhos ou
funeral na lua).
Absolvições
existiam
mas, somente nos casos de cleptomania devidamente atestados
por uma dezena de psiquiatras forenses,
todos particulares. Tudo
corria
dentro
da mais estrita legalidade. A
Constituição era bastante
clara,
os pais-legisladores foram
econômicos e enfáticos:
a inveja é pecado e
toda cobiça será
castigada.
Acreditavam
que quanto
maior o ruído provocado
pelos homens
de bem,
menos
delinquentes e
transgressores haveriam
na
praça. E, numa sociedade onde todos aguardam
recompensa,
alguém
tem que pagar o pato, pois
não existe almoço grátis. E
naquela tarde, Batista
caíra
na
malha fina.
O
público esfregou as mãos; a
bolsa
deu um up; o
dólar disparou,
imediatamente
estabilizado
por
uma alta significativa nas comódites;
o desempenho satisfatório das
aplicações em letras do tesouro baseada nas oscilações dos preços
no varejo, elevaram
o euro a patamares nunca
vistos.
Feitos
os cálculos, computados
os prejuízos futuros
daquela
nefanda ação
e realizada uma ponderação
entre as projeções dos diversos institutos quanto ao comportamento
futuro dos mercados, foi
em vão a luta dos desenvolvimentistas. Mais
uma vez se viram
derrotados pela pertinácia dos
neocon’s
(ala
majoritária
dos cabeças
pretas
do partido
liberal
conservador). Na
quebra de braço secular entre
a produção e o rentismo, mais
uma vez, os progressistas
levaram a pior. Especialistas
alinhados vieram
a público garantir que, levada
em consideração premissas
históricas da newsociology
(doutrina
científica baseada
exclusivamente no
senso comum)
ao final tudo se ajeitaria em
torno de uns 40% de valorização nas
ações dos dois
mais prestigiados laboratórios
de dramaturgia, exatamente
aqueles encarregados
da educação de massa,
presencial e à distância, nos
três níveis básicos.
Apostadores
soltaram na rede um vídeo-boato atestando a
irrelevância do
caso nº 10987B856/17,
instruído na
segunda vara de direito penal da
capital. Colocavam
todas suas fichas na hipótese
de que tudo seria esquecido por
volta da quarta ou
quinta instância.
Mas, tiveram
que morder a língua e se,
ainda estivesse na
moda o uso de
chapéu, teriam sido obrigados e comê-los.
Aquele foi
um espetáculo ímpar, durou
década e meia para ser
concluído. Gerou
um
volume
assustador de
apostas,
milhares
de petições, manchetes,
artigos, teses, filmes, peças de teatro e uma infinidade de
comentários na rede social,
além de
generosas e polpudas
contribuições
da indústria alimentícia para
a construção de novos
presídios.
Finalmente,
às cinco da tarde daquela
sexta-feira, ninguém voltou
pra casa. Todos se prostraram diante de aparelhos televisivos -
acontecia o
julgamento
da última apelação feita pela
equipe de advogados da
defesa. Sob escolta armada, vigiado
por câmeras estrategicamente colocadas nos pontos nevrálgicos,
acompanhado com baraço e
pregação, o réu foi
conduzido sob os olhares silenciosos da população até
a presença do juiz-
superior-e-supremo
encarregado da leitura da
decisão unânime do vigésimo
quinto júri. Ninguém
duvidava, Batista seria,
em definitivo, declarado
culpado. Como era de
praxe, o magistrado
nem chegou a desdobrar a folha
de papel com a decisão. Tão
logo, a sessão foi aberta com a pompa tradicional, ele anunciou a
sentença: duzentos anos
de trabalhos forçados,
cumpridos em
confecções
de roupas
masculinas.
A sociedade
respirou aliviada.
O crime fora punido,
a justiça realizada
e a
vida seguiu. Porém, daí a
poucos dias, já era visível o
estado deplorável das pessoas.
Possuídos por aquela
melancolia característica,
aquele ar blasé tomando conta
das fisionomias…
Continuar assim, tudo iria por
água abaixo. O sistema não
aguentaria tamanha
apatia.
Algo precisava ser feito.
Alguém
tinha que ser
induzido
ao crime. E,
na calada da noite, o
algoritmo sorteou.
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