Never, never land, Leonard McGurr, 2003
Diferentemente
de outras anomalias que costumam preferir o espaço sideral e/ou
privado, essa se deu, em público, numa das avenidas mais
movimentadas da capital. A boa notícia é que não ocorreram maiores
consequências que alguns para-lamas amassados, tropeções,
encontrões e esbarrões entre transeuntes. Infortúnio mesmo, sofreu
um ambulante: sua banca de bijuterias encontrava-se nas mesmas
coordenadas onde a rachadura espaço-temporal aconteceu, num corte
que ultrapassou os limites do asfalto. Em meio ao alvoroço, ninguém
percebeu um filete gelatinoso esgueirar-se da fenda e escorrer direto
para boca de lobo mais próxima. Noticiários noturnos foram unânimes
em redundâncias: os mesmos especialistas, as mesmas platitudes.
Enfadado, deixei-os falando sozinhos e fui abrir um envelope pardo,
que me foi deixado à porta, sem qualquer sobrescrito. Como costumo
enviar originais, cogitei tratar-se de resposta de algum editor aos
meus insistentes pedidos de consideração mas, para minha renovada
decepção, não havia missiva alguma, apenas um pendrive.
Deseja
que tudo seja transcrito de modo que você
entenda? Essa foi a mensagem logo que dei o enter. Sim,
claro… Óbvio.
Mas não era óbvio que surgisse
uma animação (bem elaborada, por sinal). O pequeno conto era
sobre um sujeito que fugia da dimensão n e vinha atazanar a
nossa. Causou-me espécie o nome do personagem. Se fosse tentar
explicar diria tratar-se de um extenso vocábulo formado de
consoantes entrelaçadas por onomatopeias explosivas.
Impronunciável. Bagunça pra mais
de metro. Pensei
no meu vizinho
sabichão. Talvez fosse ele
a brincar com minhas idiossincrasias... Mas logo
mudei o foco e intuí que aquilo poderia ser uma espécie de vírus.
Alguma má consciência estava tentando tornar-se senhor do meu
sistema nervoso central e essa suspeição me fez coçar mais ainda
minhas perebas.
Todos
os canais continuavam a repetir os mesmos informes sobre o estranho
fenômeno, ocorrido no centro da cidade, em pleno horário de pico. A
essa altura eu já estava bastante arrependido por ter autorizado o
download, pois de nada
adiantava passar e repassar
um
antivírus free, o pobre não dava conta do recado. A
animação restava indelével no meu computador. Quando senti chamas
consumirem meu estomago, lembrei da Caixa de Pandora, ajeitei a bunda
na cadeira, respirei fundo e… Apertei o play. Decidi
ver até onde aquilo me levaria. E
tal qual na realidade, tudo começou com um rasgo no tecido espacial
e uma criatura, com poderes extraordinários, comparece disposto a
barbarizar. Conflito em estado bruto.
Desse
ponto em diante, tudo pareceu correr simultaneamente: animação e
realidade se abraçaram num ponto quântico qualquer, tornando difícil dizer quem era a bola e quem era o pé. Tanto lá quanto cá,
a gelatina que ninguém viu escorrer direto para a boca de lobo mais
próxima, misturou-se às porcarias que todo bom e velho esgoto nutre
e cultiva e logo estava plenamente adaptada ao nosso ambiente, tendo
nesse meio tempo, escrutinado o mais fundo da alma humana e
selecionado, para seu uso privado, o nosso mais pavoroso medo.
Confortavelmente integrado ao papel, ele enfiou-se num terno
de grife, botou alguns diplomas na parede, ensopou o cabelo
de gel, amaciou a voz e largou-se a promover, pra quem quisesse
ouvir, preleções performáticas sobre
a-arte-de-empreender-qualquer-coisa-sem-jamais-ter-empreendido-coisa-alguma.
Ao término das palestras, fogos de artifícios ululavam dentro das
nossas cabeças. Tudo muito fácil, sem exigir prática ou qualquer
habilidade. Mas como dizia minha mãe, no começo tudo são rosas. E
aí, quando o pessoal se deu conta, o diabo não era mais como sempre
fora pintado. Conquistado corações e mentes de deus e todo mundo,
chegou a hora da fatura. E não foi difícil perceber onde tínhamos
nos metido. Estávamos totalmente imersos num mundo que nos excluía.
Um mundo cujo único propósito era a manutenção, a ferro e a fogo,
de uma senhora maldade. Ele tinha
usado contra nós nossos
próprios demônios e, após
nos seduzir, tal qual Fausto, agora
nos consumia,
delicada e civilizadamente.
A
animação deu um salto no tempo, distanciou-se da realidade o
suficiente para que eu compreendesse umas coisinhas. Convencido do
diagnóstico, demorei para aceitar o tratamento. Embora
tenha sido
alertado quanto a
possibilidade da solução
deus
ex-machina,
posso lhes garantir que o final não se baseou no que assisti
pelo computador, mas naquilo que senti com esses nervos que um dia a
terra há de comer.
Enquanto
ele traçava melífluos arabescos no especto sonoro, deitando
falação sobre os efeitos deletérios da separação igreja-estado e
acólitos ministravam oficinas da célebre terapia do banho-frio para
educar tentações e rebeldias, as aranhas apareceram. Metálicas e
sibilantes, voaram de lá pra cá e de cá pra lá, como cães
farejadores. De repente, cintilaram faíscas dos seus múltiplos
olhos, deram meia volta e, céleres, reuniram-se em torno d’ele,
envolvendo-o numa teia
líquida esférica e perfeita. Brados de protestos se elevaram
aos céus mas não impediram que um cilindro prateado, interminavelmente comprido, de mais ou menos uns cinco centímetros de diâmetro, descesse sobre o casulo transparente e, de uma única
aspirada, sugá-lo inteirinho sabe-se-lá-pra-onde-pra-fazer-o-quê,
no mesmo instante em que descobri, tatuada em mim, a pergunta
crucial: eram os deuses nanos-filósofos-cirurgiões?
No
dia seguinte, ao receber o salário semanal de um contrato
intermitente que mantenho como deliveryman numa boutique de
coxinhas, consegui pagar a primeira prestação de um antivírus que
cumpriu com o papel. A animação foi finalmente deletada da minha
máquina mas, fiquei com a sensação de que o ontem jamais existiu.
Parece que o ontem sumiu do mapa. Em vista disso, decidi que o melhor
era dar sequência à corrente. Conseguiu de um parça meu -
guerrilheiro urbano - que trabalha no almoxarifado de uma
multinacional, o fornecimento de quantos envelopes pardos eu precise
para a empreitada de fazer chegar a cada casa dessa cidade, um
pendrive de presente.
Espero que, quanto mais gente interagir com a mensagem, mais
próximo ficarei da verdade: preciso saber se ontem, com toda aquela
teia estranha de acontecimentos, pode constar, como fiel e verídico,
no meu banco de memória.
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