The Wall, Abbas Kiorostami, 2010
Quando
acordou, espichou o olho para o lado e desolado, constatou que, mais
uma vez, não teria com quem brigar: a mulher não estava, partira em
mais das suas viagens de turismo cultural.
A
caminho da piscina, deu um pescoção na empregada e encontrou alívio
ao exigir que ela engolisse o choro e parasse de praguejar.
Durante
o café, diante da tela de plasma, o âncora de dentes alvíssimos
levou-o a chafurdar em assassinatos, assaltos, perseguições
policiais, rebeliões em presídio, acidentes a dar com pau, brigas
domésticas etc., etc., etc… E para coroar a mundiça, vidrou uma
mesa redonda com especialistas que discutiam leis mais severas, pena
de morte e a decretação do juízo final.
–
Vê só, Mercedes, assim funciona a coisa: cria-se medo pra que
compremos segurança. Adoro esse sistema.
Saiu
cantarolando em direção ao arsenal. Primeiro vestiu o hauberk,
um lorigão ou simplesmente cota de malha (macacão de aço apto a
resistir a qualquer petardo). Por cima, uma camisa de cambraia de
linho egípcio, na cor neve. Em seguida, escolheu um retilíneo terno
pós-flandriano cinza capital e gravata sedosa Sancler du Mont
na cor azul ianque – um luxo. Para coroar tamanha elegância,
colocou na cintura um eficiente Colt 45; na axila, a amada Glock –
invisível a detectores de metal; no bolso interno do paletó, uma
PPK – pra se sentir James Bond; e, na virilha, a Armatix iP1, cuja
trava eletrônica permite apenas ao dono empunhar e disparar.
Finalmente, checou a Uzi na valise e conferiu a trava de segurança
do imprescindível rifle de assalto F2000.
Ao
dirigir-se à garagem, socou as costelas da lacaia que,
dramaticamente, deixou-se cair, feito saco velho de batatas, no piso
de marmóre de Estremoz da cozinha decorada com o melhor que o mogno
amazônico e o aço alemão podem oferecer a uma dona de casa.
Fazendo
juz à sua reputação de macho alfa, solicitou, energicamente, que a
doméstica parasse com aquele piti e desse um brilho adicional no seu
Testoni confeccionado com os melhores couros de jacarés,
forrado com pele de cabra marroquina, encimado por uma fivela de ouro
24 quilates.
O
Land Rover blindado, motor V-8, 503 cavalos de potência já o
aguardava urrando tal qual um grizzly no cio. O sistema de
defesa e ataque (devidamente importado de Israel), imediatamente foi
colocado em estado de alerta, pronto para ser acionado assim que
necessário.
Ao
parar no semáforo, o segurança eletrônico avisou da presença de
um indesejável e famélico malabarista. Ato contínuo, a mira foi
travada e sem que houvesse
contagem regressiva, bum…
Mais um
zé-ninguém,
devida e eficazmente, pulverizado para todo o sempre, amém.
Após
ouvir o adagio da New World Symphony de Dvorak e, alcançada a
paz, colocou pra cantar seus Pirelli 235/40R19 Pzero XL
NeroGT 96Y compradas no
black de um mecânico
dissidente da Fórmula 1. Porém, logo teve que frear bruscamente:
uma manifestação monstro de prejudicados barrou-lhe o caminho. Sem
titubear, ligou o automático, passou por cima de uma centena de
pessoas e continuaria seu trajeto não fosse um policial, montado
numa 950 cilindradas o alcançar.
–
Sim, senhor… Que bagunça, hein?
–
Presumo que saiba com quem está falando?
–
Saber eu sei. Mas tudo tem lá seu limite: não se pode simplesmente
sair por aí espalhando merda na nossa cidade linda e limpa… Sinto
muito mas, tenho que multá-lo…
–
Sabemos que existe um remédio para isso, pois não?
–
Depende…
–
Alguma sugestão?
–
Se me permite… Por acaso, tenho um primo… Um minutinho… Nabuco,
sou eu… Olha só, um conhecido meu, gente fina, fez uma cagada
homérica na Juvenal Peixoto… Dá pra mandar uma equipe?… Beleza…
Você é o cara… Outro… Um cheiro no sovaco…
Deixou
um cartão com o guarda e seguiu sem perceber que a felicidade tem
prazo de validade. Ao sair do elevador no 45º andar da sede da
empresa, foi recepcionado, aos gritos, pelo presidente do maior
conglomerado da paróquia no ramo das coisas que todo mundo deseja,
ou desejará um dia, caso continue a aparecer na mídia e consiga
manter patrocínio de todos os eventos esportivos capazes de juntar
multidões. O pobre homem tinha os fiscais do governo em seus
calcanhares e temia que aquelas canetas caprichosas e desprovidas de
civilidade pudesse macular o honrado nome da empresa… Onde estava a
lista dos políticos alugados? Quem são os juízes e procuradores a
soldo? E mais: queria, agora mesmo em sua mesa, um arrojado plano de
marketing que fulminasse a concorrência e otimizasse os lucros. Foi
quando ele solicitou cinco minutos, para chutar alguns traseiros e,
ato contínuo, trouxe a solução na ponta da língua: vincular todos
os produtos, fossem quais fossem, à lógica infantil…
– Nos dias de hoje, explicou, por
falta de espaço e hiperatividade das crianças, os pais fazem de
tudo para mantê-las quietas… O negócio é oferecer tudo
como se fosse doce ou brinquedo.
–
Genial, aplaudiu o chefe. - Agora vamos até a varanda do 2º andar,
mijar na cabeça de alguns transeuntes.
–
Adoraria mas, infelizmente, tenho ainda que apalpar umas buzanfas...
Até
a hora do almoço, ainda encontrou tempo para sussurrar obscenidades
no ouvido de duas secretárias e, na saída, sem perder o bom humor,
passou uma rasteira no porteiro e saiu assobiando Singin' in the
Rain, certo de que vivia
no melhor dos mundos.
No
majestoso clube (edifício neocolonial com fachada neoclássica
decorada com imensos painéis concretistas acima de qualquer
suspeita, devidamente planejado para disfarçar as fissuras oblíquas
que lhe atacavam os pilares de baixo para cima) alojou-se, na sua
poltrona predileta e logo uma generosa dose do velho Macallan
(single malt de 64 anos) achegou-se à sua
mão esquerda, enquanto seus olhos ávidos de entertenimento,
repousaram na tela de 75 polegadas exatamente no instante em que o
“aquele canal” dava inicio ao leilão do dia: 72 virgens,
450 kg de coca, 200 fuzis metralhadora com 10000 cartuchos cada um,
30 misseis terra-ar, 25 terra-terra e duas belezuras de 100 megatons,
cada uma, novinhas em folha.
Após
saborear testículos de antílope indianos marinados no leite de
onça-parda e arrematar algumas coisinhas, bateu soninho. No caminho
de casa, esforçando-se para não cochilar, abateu, sem misericórdia,
cinco travestis e uma puta balzaca.
Na
segurança do lar, encontrou a família reunida.
– Quanto tempo ainda pra você
chegar à presidência? Não aguento mais a Liliexbeth agindo como se
fosse madre superiora. Ela é mulher muito cruel, sabia?
– E as minhas gracinhas… Não vão
apresentar os convidados?
– Pai, este é o meu marido.
Estamos de partida para o Paraguai, disse o pimpolho.
–
E esta é a minha noiva, falou a caçula. Mas ainda não é nada
definitivo.
– Mas assim não terei posteridade!
Uma
sonora gargalhada preencheu o espaço. Comportamento incomum naquele
ambiente no melhor estilo “ostenta que te fa bene”.
–
O que há contigo, Jêninho? Sempre vivemos no agora,
sentenciou a esposa.
Diante
da janela blindada com vidro SR 5096, soube que deveria pensar um
pouco mais naquelas palavras, porém seus olhos não conseguiam
desgrudar do impávido colosso que cercava sua propriedade.
…
–
Alguma alteração?
–
Nenhuma, doutor. Continua fitando a parede.
– Vamos introduzir, então, a
Clozapina de 100.
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