Cyclops, Theodoros Stamos, 1947
Acordou
às cinco da manhã disposto a pegar ônibus lotado
Chegar
atrasado no serviço
Perder
o descanso remunerado
E
ainda levar uma tremenda bronca do chefe…
Acordou
disposto a ser esquecido numa fila
De
atendimento no Sus
E
não reclamar da falta de respeito
E
do desprezo que o serviço público devota à população
E
não se insurgir
E
ainda suportar lamúrias dos que cultivam privilégios…
Acordou
disposto a não dar mole pro azar
Principalmente
não olhar no olho do polícia
Por
medo que o homem se ache desafiado prum duelo
E
saque sua ponto 40 antes que ele tenha tempo
De
exclamar: - O que é isso cidadão?…
Acordou
disposto a ser atropelado na avenida principal
Por
um automóvel de luxo em alta velocidade
Apenas
para ver uma multidão reunida à sua volta
Tirando
selfies
Perplexa
com o
estrago causado em
máquina tão cara…
Acordou
disposto a devotar seu ódio a todos que o contrariam
Disposto
a não estar nem aí com a violência
Sobre
a beleza e o mistério das mulheres desejadas
Sobre
a invejada coragem dos gays
Sobre
a cobiçada sabedoria dos índios
Sobre
a galhardia do samba periférico dos pretos pobres
Sobre
a astúcia dos meninos famintos que sonham o sonho burguês…
Acordou
disposto a ouvir um argumento
pobre de direita
Defender
manifestações de apoio a
torturadores e venais
Aplaudir discurso de corruptos contra
a corrupção
Endeusar magistrados que agem como
parte
Regozijar-se com os capitães-do-mato
que estalam seus chicotes
Sobre
os seus
ombros esfolados de tanto
sustentá-los…
Acordou
disposto a salvar-se convertendo-se a uma seita
Apenas
pelo prazer de entregar tudo que tem
Para
realização e sucesso dos seus guias
Ao
tempo em que se compromete
A
jamais questionar suas práticas
Jamais
desobedecer suas ordens
Jamais
faltar com a sua fidelidade
Enquanto
aceita de bom grado a infidelidade deles
E
a incúria dos seus pares…
Acordou
disposto a zombar de todas as diferenças
A
perseguir e pisotear crenças que não as suas
A
fazer do vício virtude
A
mentir para se inventar
A
mudar as regras no meio
do jogo
esquecido
do
fair play
E
por um capricho da natureza fazer-se de vítima
Sempre
que for flagrado manipulando fatos, histórias e estatísticas
Em
benefício da mão invisível do mercado…
Acordou
disposto a jamais proclamar sua dor
A
ser solidário apenas consigo mesmo
A
esquecer a compaixão
Piedade
A
não alimentar qualquer tipo de afeto
Simplesmente
desamar e nutrir apenas interesses e posses
E
mesmo assim desumano insistir em sobreviver
Fingindo
viver no melhor dos mundos...
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