O Sapo, Tarsila do Amaral, 1928
Presta
atenção nessa lenda, vou contar do jeitinho que ouvi. Numa
ilha bem distante, pertinho donde mora o sabiá, era uma vez a
princesa Magnólia que gostava de jogar futebol. Um
dia, na hora de marcar um gol, deu uma bicuda tão forte que a bola
caiu num lugar sinistro chamado Lagoa da Perdição. Grita
daqui e dali, ninguém quis saber de ajudar. A princesa abriu o maior
berreiro, chorou tão alto que tudo mundo correu pra longe protegendo
os ouvidos. Ficou apenas o sapo-cururu, que foi quem primeiro me
contou essa história.
Começa
assim. O sapo, meu amigo, passava pelo charco no instante em que
Magnólia começou o chororô e percebeu que era uma boa oportunidade
para conseguir o que queria. Chegou até ela e disse que mergulharia
nas águas turvas da lagoa e traria de volta, são e salvo, o
brinquedo dela. A princesa, enxugando as lágrimas na barra do
vestido, gritou que ele fosse logo, que ele era servo e que,
portanto, tinha obrigação de ajudá-la. Se não trouxesse a bola o
mais rápido possível chamaria os guardas do seu pai pra prendê-lo
por desobediência.
Aqui
entre nós, todo mundo sabe que o batráquio não tinha obrigação
nenhuma de ajudar seu ninguém. A gente ajuda porque tem
vontade, porque tem compaixão, porque não aguenta ver outra pessoa
sofrer. Mas,
foi por aflição que o sapo decidiu ajudar. Um problema grave
ocorria. Sua namorada estava vivendo uma situação difícil e ele
precisava fazer o que fosse preciso para livrá-la do mal que a
afligia. Porém, precisava fazer as coisas direito, livre de erros.
Por isso achou melhor não falar o motivo que o trouxera àquelas
paragens, falou apenas que recuperaria a bola se a princesa lhe desse
uma tigela de ambrosia. Magnólia ficou com uma pulga atrás da
orelha. Estaria o sapo dizendo a verdade? Em meio à dúvida, não
teve alternativa senão concordar com o pacto: se o sapo trouxesse a
bola, teria o quanto de ambrosia pudesse carregar.
Cururu
mergulhou na lagoa espessa e ao chegar ao fundo levou um baita
susto ao encontrar Boiaçu, a Cobra Grande. A serpente, que tinha
engolido a bola de propósito, disse que devolveria em troca de um
favor. E contou-lhe uma história. No passado fora uma linda moça
que casou com um rapaz bonito e cheiroso que, no começo, parecia bem
legal mas logo revelou-se um tremendo “casca
grossa” indiferente
aos seus sentimentos. O sujeito, com o tempo, começou a tratá-la
mal. Ameaçava-a sempre com pancadas se não fizesse o que ele
queria. Certa vez, tomado de raiva, deu nela com um cabo de vassoura
que lhe deixou uma marca feia nas costas. Os pais dela gostavam
demais do moço, diziam que ele era muito esforçado, trabalhador e
por isso não acreditavam nas queixas da filha. Falavam que ela
precisava deixar de ser patricinha; se adaptar à realidade;
que casamento era assim mesmo, que com o passar do tempo o amor chega
e aí todo mundo é feliz para sempre. Pois é. Mas foi só os velhos
baixarem à sepultura para todo mundo descobrir o verdadeiro
motivo do carcamano ter se casado com ela: a herança. Tão
logo passou o luto, o malvado contratou um feiticeiro que,
imediatamente, a transformou naquela serpente rancorosa,
desterrando-a para os confins daquela água parada. Desde então,
vivia separada da sua filhinha – a doce e terna Magnólia. Se
conseguisse fazer com que a filha a abraçasse, todo feitiço seria
desfeito e a justiça restaurada.
Com
a bola debaixo do braço, o anuro nadou de volta à superfície.
Assim que a princesa recebeu o brinquedo, botou sebo nas canelas
e picou a mula na direção de casa, largando o sapo a ver
navios. E
agora? Gia, sua namorada, prisioneira na caverna do implacável
Ciclope do Olho Redondo, estava lá a espera que ele arranjasse um
bocado de ambrosia para saciar a fome do gigante. Se não aparecesse
com o resgate até as duas horas do dia seguinte, adeus amor, adeus
família, adeus mundo… Também ele iria para o tacho.
Pula
daqui e dali, não passou desapercebido aos guardas do palácio que o
levaram à presença do Rei. O monarca tapou o nariz com um lenço de
seda, fez cara de poucos amigos e ordenou que o jogasse fora. O sapo
pediu licença para falar umas palavras e foi aquele furdunço.
Ninguém nunca tinha ouvido um bufo marinus falar. O vizir,
um traste
muito do puxa-saco, cochichou no ouvido do rei que aquilo era
um achado, um talento daqueles significava dinheiro, muito dinheiro
no bolso da majestade, que pensasse em apresentações daquele
fenômeno em feiras, circos, teatros, televisão, cinema… Sua
Majestade ficaria ainda mais rico se soubesse explorar aquela
oportunidade. E o rei sorriu e não sentiu mais nojo. Ordenou que
preparassem uma festa onde o braquetápulos seria apresentado
à Corte. Cururu vendo que tinha acabado de entrar noutra roubada,
teve que pensar rápido num jeito pra conseguir pegar a ambrosia e
dar o fora dali rapidamente.
Quando
os guardas o estavam levando para tomar banho e trocar de roupa,
Magnólia atravessou o corredor e não acreditou no que viu. Como é
que o sapo tinha conseguido entrar no palácio? Aproximou-se e disse
aos guardas que deixassem que ela mesma conduziria o convidado aos
aposentos, que ela mesma escolheria a traje que o amigo usaria no
baile daquela noite. Deixados a sós, Magnólia quis saber qual era a
dele. Ora, respondeu ele, estava apenas tentando resolver um problema
cabeludo e se ela tivesse um pouquinho de gratidão o ajudaria nessa
hora de angústia. A
princesa admirou-se e sentiu vergonha. Arrependida, decidiu que o
ajudaria mas com a condição que lhe contasse toda a verdade, qual o
motivo dele querer pra si o alimento mais caro do mundo.
Meu
amigo resolveu abriu o bico e contou tudo. Que tinha se encontrado
com Boiaçu e ficou sabendo dos maus tratos para com a rainha, sua
mãe. Apenas ela, e mais ninguém, poderia anular o feitiço. Como
aquilo era possível, perguntou Magnólia. Sua mãe havia morrido, o
pai lhe dissera. Mentira, gritou o sapo. É só ir até a lagoa que a
verdade será revelada. A
princesa, que era uma manteiga derretida, correu chorando para o
mato. Como ter certeza das coisas? Só havia um jeito: ir fundo na
história. Temerosa, meio sem jeito, aproximou da lagoa e sussurrou:
Mamãe… E, animada gritou: Estou aqui, mainha! Boiaçu,
botou a cabeça fora d’água e sentiu que seu sofrimento tinha
acabado. Mãe e filha correram para o abraço e um clarão iluminou
as duas: o feitiço estava desfeito.
Agora,
era preciso castigar o rei, por sua maldade. Magnólia pediu às
amigas formiguinhas que elas trouxessem o monarca até ela. Quando
ele chegou e viu mãe e filha juntas, pediu perdão por ter sido tão
cruel, alegou que fora enfeitiçado mas, de nada adiantou suas
súplicas, foi sentenciado a perder tudo e a perambular pelo mundo
ganhando a vida com o suor do seu rosto.
De
volta ao palácio, princesa e rainha decidiram presentar o sapo com
uma tonelada de ambrosia, o bastante para que ele salvasse a amada.
Magnólia quis beijar o amigo pensando que ele se transformaria num
príncipe mas, Cururu achou melhor não, aquilo era apenas uma
história de trancoso. Onde já se viu bicho virar
gente? Mais fácil gente virar bicho, isso sim.
Finalmente,
livre de problemas, meu amigo casou-se com Gia, a Prudente. Tiveram duas lindas meninas, Rhinella e Marina e todos viverão felizes para sempre, se você, que leu ou ouviu o meu conto,
passar adiante essa história.
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