Mitos Profecias do Fim do Mundo
Nina Tokhatman Valetova, 2009
Existem
histórias destinadas às chamas.
Federico
Hamor Dazonni
Editor
de Cultura
Gazeta
Minudente, 15-02-1963
Bisonho
Pata Molhada era um touro vulgar, burro e ladrão…
Contudo: dono, juiz e senhor de dois terços de Beira do Cipó.
O terço restante, seguia governado por uma seleta e abençoada
mistura de corvos boa praça com camundongos
sectários, devotos do queijo voador.
Para
legitimar tudo isso havia um
time
de especialistas, fazedores
de leis, decretos,
normas, portarias,
comunicados e memorandos,
devidamente gerenciados
pela Corte dos
Cágados Relutantes,
tribunal com
plenos poderes para legislar em causa própria em qualquer foro que
lhe for do agrado.
Vagando
de déu em déu se arratavam os Prejudicados, presa predileta
dos pavões-do-mato – exímios
praticantes da arte de arrancar o couro sem matar o cabra. Pau
pra toda obra, era na classe prejudicada, parcela majoritária da
população, que se recrutava os melhores braços para as lides
diárias. Entregues às labutas de comer o pão que o diabo amassou;
fazer das tripas coração; viver entre a cruz e a espada; meter a
mão em cumbuca; comer gato por lebre; apanhar touro a unha; chover
no molhado; procurar chifres em cabeça de porca; conduzir vacas ao
brejo… Em meio a tantas atribuições e atribulações, mal tinham
tempo para curtirem o vuco-vuco dos fofuchos
pintassilgos que, adoravam distribuir carteiradas a torto e à
direita e tinham por profissão, desfilar, dia e noite, a bordo de
seus possantes dotados de autoconsciência e amor-próprio.
Em
meio a tudo isso, transitavam serelepes e audazes, cobras
apostadoras devidamente subvencionadas pela única rede de
comunicação e entretenimento autorizada a transmitir, ao vivo, as
peripécias da equipe de robôs endiabrados fabricados pela
corporação Sofarway, uma empresa ecologicamente correta, a
serviço da simpática máquina boazinha e à acumulação rápida e
indiscreta de capitais.
Sustentavam
tal sistema, o conjunto
dos lagartos zeladores
ab ovo das sagradas
estatísticas, exímios
calculadores de
mágicas margens de erro.
Mas
nem tudo é serviço. Para alegria geral, concursos anuais eram
realizados entre as tanajuras para escolha dos melhores
glúteos, em benefício exclusivo do aprimoramento da raça. Este
inocente e cordial passatempo era motivo de júbilo, verdadeira febre
esportiva, muito apreciada e incentivada, sem furdunço, pelos altos
e baixos escalões. Embora causasse desconforto na minoria
intrometida de meia dúzia de gansos, temerosos
de deformações
endógenas que, empertigadamente, viviam solicitando, sem sucesso,
maior controle do evento por parte das autoridades sanitárias.
Para
contornar qualquer possível impasse, o comitê responsável pela
organização de festas instituiu os Jogos Fodásticos –
conclave realizado de quatro em quatro anos, numa localidade
escolhida para receber a Batata Quente (símbolo maior da
nossa tradição). Este evento era a fonte mais rentável de
dividendos para a economia beiracipóense. Porém,
dado
o caráter volátil da
dinheirama arrecadada,
era
praxe vê-la aparecer
em contas secretas de
paraísos fiscais, sob
pretexto de preventivas medidas
para se
evitar qualquer tentativa
de moratória dos juros
devidos, desde que o mundo é mundo, ao exclusivo Clube das
Aves de Rapina que Voam Alto e Enxergam Longe. Verdade
que alguns
nativos lamentavam
o costumeiro sequestro de 95%
da renda individual sob
a alegação de que era
preciso contribuir para a
manutenção do equilíbrio geopolítico global ora
em uso. Mas ficava-se
apenas no lamento
e, por não convir dar trela
pras mazelas, desprezava-se,
de pronto, tais conjecturas e suas incômodas
consequências.
E
se nem tudo é serviço o
mesmo se aplica às lágrimas.
Para alcançar o riso largo,
bastava
olhar para o
colossal rebanho de ratazanas
transgênicas, capazes de produzirem uma qualidade de leite
com alto teor de testosterona. Sucesso absoluto de vendas, tal bebida
láctea era recomendada aos varões viris da comunidade, para o bem
de suas desassombradas conformidades. Além disso, havia a coqueluche
nacional, o biscoito Tetas da Mamãe, guloseira
sem qualquer valor nutritivo, mas orgulho pátrio especialmente por
derreter na boca e vir com prazo de validade indeterminado.
Mas
antes que eu me perca, devo correr ao ponto. Era uma tarde
desavisada, tarde que ninguém daria um tostão furado por ela, tarde
sem quaisquer atrativos senão os costumeiros, ruidosos e agressivos
protestos exigindo-se tolerância para com nossa intolerância, Pata
Molhada teve um surto de bobice. Doutos e ilibados
cérebros não chegaram a um acordo se firula ou faniquito
dos brabos. Na dúvida, recomendaram chá de losna, sem açúcar,
três vezes ao dia. Contudo, em vez das melhoras, Bisonho
manifestou desejo de criar o mundo do nada e em sete dias entregar a
obra pronta. Enlouquecido com a quantidade de detalhes a considerar,
lá pelas seis e meia teve um arrebatamento. Uma luz canônica o
alçou até o celeste domínio do queijo santo. Após
voo
rasante
sobre a névoa do passado,
compreendeu
que já tinha sido tudo, menos honesto e
decidiu, ali
mesmo, na esfera metafísica,
começar nova
vida. E
qual não foi a sua surpresa
ao verificar que tinha diante
de si um vetusto
templo antigo.
Após
passar por
um treinamento intensivo e
bastante
puxado com os monges locais,
finalmente, ao
cabo de algumas
horas, recebeu
o diploma
de
sujeito bom
e virtuoso.
Ao
retornar
à Beira do Cipó,
achando-se
renovado e pronto para
iniciar jornada épica e
porreta, Pata Molhada, crendo-se
agora honesto,
não contava que, ao chegar
em casa, sua família não o
reconheceria,
seus amigos o detratariam,
sua mulher lhe
rejeitaria
e todos
riram dos seus esforços para convencê-los
do contrário… Até
os bichos de criação cagaram
e andaram
à sua suposta
mudança. Muito puto dessa
vida, indignado, possuído
por uma
ira divina,
deu-se
por satisfeito com aquela presepada. Ao
acordar
do pesadelo, decidiu
esquartejar,
em praça
pública, o autor dessa
história.
Enquanto
caminhava para o patíbulo, pude
ouvir o decreto de celebração
do
fim do ano seguido por
intermináveis fogos
de artifícios
que iluminaram
o céu dos
brigadeiros e urubus. E, na
contagem regressiva para a chegada do novo
ano, antes que a
faca do açougueiro-mor
encontrasse as minhas partes,
eis que
a agência
de trafego aéreo informou,
em boletim extraordinário,
que um meteoro
gigante e com intenções
cataclísmicas, acabara
de entrar em rota de colisão
com a Terra.
Imediatamente, foram
confirmados
os 99,99%
de chance daquele
troço, tresloucada
substância sólida, atingir em
cheio Beira do Cipó.
Uma onda de pânico
tentou chegar à praia
mas, num golpe de mestre, foi
contida
pela intervenção
do pessoal
do
Show Dominical de
Todo Domingo que,
abençoados
pelos tubarões
da mídia, convocaram os
pensadores de plantão. Em
parceria com diretores
de marketing, não pensaram
duas vezes em encomendar, às
melhores agências de propaganda,
duas ou três
cartas na manga,
para
garantia de sobrevida
ao
patrão.
Na
confusão, consegui escapar com
a ajuda de
um conhecido meu,
fabricante de psicografias poéticas, ditados por palhaços
obsessores que, enxergou
na ocasião, uma chance de colocar
em prática um infalível
plano conspirativo de
malfadamento das instituições, cansado
que estava da posição
decorativa que ocupava no jogo
político literário e
ávido por colocar um ponto
final no predomínio
cultural da turma dos
comedores de pequerruchos.
Enquanto buscava
construir algum tipo de rede
de proteção, mal
tive tempo de redigir essas malfadadas linhas e,
enquanto
o meteoro caía,
senti abrir-se as
portas do beleléu.
Embasbacado, mal tive tempo
de jogar esse
conto
ao
mar.
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