Blood On Our Hands, Joan Snyder, 2003
Somos
o viajante e a viagem,
a
felicidade e o desespero,
o
problema e a solução.
Humberto
Mariotti, médico
A luz da vela tremeluzia em sintonia com os
pensamentos do jovem assistente da Primeira Clínica Obstetrícia do
Hospital Geral de Viena, às voltas com dúvidas,
contradições, questões de princípio, relatórios e regulamentos.
No ano anterior, não conseguindo a vaga de professor numa notável
instituição que desenvolvia pesquisas médicas, acabou sendo aceito
numa das duas unidades da prestigiosa maternidade. Na primeira ala,
as parturientes eram atendidas por médicos e na segunda por
parteiras. Confrontado com uma altíssima taxa de mortalidade entre
as parturientes da primeira unidade, observou que a proporção
superava, em média, seis vezes o da segunda. Claro havia uma relação
de causa e efeito entre a falta de asseio dos médicos e enfermeiras e aquele número assombroso de óbitos. Mas que
nada. Talvez as mulheres morram por conta do pudor. Quem sabe algum
estudante tenha exagerado no toque. Não, o problema era que a
direção do hospital não reconhecia os estudos de Ignác Semmelweis
como válidos. Agravado pelo fato dele não ser nativo da Áustria,
mas um imigrante húngaro. Mesmo sabotado, derrubou a tese de que a
questão das infecções estava relacionada a condições
atmosféricas telúricas. Com ajuda do seu mentor, professor
Kolletschka, da Medicina Legal, afixou no quadro de avisos que todo
estudante ou médico seria obrigado, antes de entrar nas salas da
clínica obstetrícia, a lavar as mãos, com uma solução de ácido
clórico, na bacia colocada na entrada. A despeito de ter gerado
resultados benéficos – a taxa de mortalidade caiu
significativamente após estes primeiros cuidados, a maioria dos
médicos achou aquilo uma quebra de hierarquia. Médicos devem
assemelhar-se a anjos, impecáveis como nuvens num dia de verão,
repetia pelos corredores. Mas se não aceitassem lavar as mãos, quem
os obrigaria a trocar o avental, típico de açougueiro, quando saiam
das suas aulas de anatomia, de suas concorridas autópsias e
dissecações direto para a sala de parto? Não desistiria, era
preciso criar barreiras sanitárias. Onde existe sujeira existe
dinheiro pode ser aplicado às fábricas jamais a um hospital.
Após a morte do amigo, aconteceu o fim do mundo,
em pleno 1847. De onde vinha a autoridade pretendida pelo jovem
Semmelweis, gritaram os luminares. Quer dizer que agora qualquer um
tem algo importante para dizer? Como se atrevia? Insurgir-se, propor
mudança de métodos – práticas exaustivamente comprovadas por
anos de experiência e observação? Que se recolhesse à sua
insignificância ou medidas drásticas seriam tomadas em nome da
preservação da ordem, dos costumes e a hierarquia. E que todas as
comunicações, todos seus estudos, planos, análises e solicitações
fossem arquivadas e esquecidas. Assepsia, pois sim. Era do
conhecimento do mundo científico que não se deve lavar demais a
pele. O efeito da fricção constante sobre a epiderme pode acarretar
rompimento dos vasos sanguíneos e as consequentes lesões podem
ocasionar a morte. Tinham dito.
Insiste, é demitido. Retorna à Hungria. Escreve,
fala, pede, implora. Chega até a abordar casais na rua, em lágrimas,
para pedir-lhes que exijam que os médicos e enfermeiras lavem as
mãos na hora do parto. Lamenta o quanto é difícil alcançar o bom
senso, que tendemos a seguir trabalhando no sentido da nossa própria
destruição, que Tânatos atua justamente naquilo que mais nos
orgulhamos: nossa racionalidade, nossa intelectualidade, em tudo
aquilo que se opõe ao que temos de mais natural e criativo. Sozinho
sem ter com quem dialogar, perde-se no tremeluzir na luz do bico de
gás tal qual uma mariposa. Resignado, deixa-se mergulhar na espiral
sem volta e, numa manhã fria de novembro de 1865, transforma-se em
nuvem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário