The Sheer Weight of History, Eric Fischi, 1982
Existe
um vigor profundo a ser sentido
ao
receber de frente
o
vento forte e agudo da compreensão
Richard
Dawkins
Cansada,
Dagmar abriu os olhos e viu a costumeira sombra na parede à sua
frente ao lado do extravagante abaju comprado em brechó num daqueles
dias em que costumava sair sem rumo e se deixar levar pela ideia de
que a beleza das coisas está na surpresa. Desejo e surpresa tornam a
vida vivível. Talvez por isso, não tenha se espantado quando
percorreu aquele contorno e sem reservas viu um rosto, um rosto
conhecido, o rosto do seu pai. Menos espanto ainda sentiu quando
recebeu de volta uma piscadela. Sorriu contente ao ameaçar perguntar
se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa, o que andava
aprontando, se ainda namorava a mamãe, se estava a arrastar asas
para alguma sirigaita? Ruborizada, ficou sem saber se se desculpava
por aquela intromissão ou pela desajeitada imitação do típico
sotaque materno. Sossegou ao lembrar do significado daquele cacoete.
O epílogo de cada história. Contada para dormir, animar o jantar,
para iniciar ou continuar uma conversa… Certeza e incerteza são
faces da mesma surpresa.
A
família se espalhava pela casa, uns na cozinha, outros na sala…
crianças em algazarra no quintal, um chorando, outro a fazer birra…
Quem não os conhecesse ficaria na dúvida: piquenique, festa de
aniversário, batizado? Talvez alguém querido estivesse partindo ou
chegando? Quem sabe uma festa de debutante ou algum adolescente
passou no vestibular? Um mero almoço de domingo? E logo perceberia
que nenhuma ou talvez todas juntas. Era uma festa, oras. Fosse qual
fosse o motivo que tivessem para comemorar. No quarto onde Dagmar
repousava, após uma longa temporada no hospital, muitas flores,
bexigas, cartões, faixa de congratulação e uma dupla, ao lado da
cama, a disputar uma concorrida partida de xadrez. Assim que percebeu
que a vó tinha acordado o que jogava com as brancas perguntou se
tinha feito a jogada certa. Ela levantou um tanto a cabeça, mirou o
tabuleiro e piscou, o menino coçou o queixo, refez a jogada e
finalmente encarou, desafiador, o adversário.
–
Vitório já chegou? A filha que acabara de entrar e veio sorridente
arrumar a manta e os travesseiros disse que no máximo em meia hora o
irmão entraria por aquela porta. – Ah, mãe, tia Ludmila acabou de
lembrar, não esqueça do primo Romualdo. Após um breve esforço,
Dagmar trouxe à mente o cabelo escorrido e os olhos misteriosos do
sobrinho e assegurou que não haveria como esquecer. Uma criança
entrou correndo, saltou sobre a cama e escorregou através da janela
enquanto dois outros o perseguiam às gargalhadas. - Só não
machuquem a mamãe. Dagmar fechou os olhos e ouviu uma obscura flauta
embalar o vai e vêm do balanço enquanto voava com os pássaros e as
folhas.
–
Não vejo a hora. O médico ficou por alguns instantes perplexo mas
ponderou que talvez estivesse certa. Férias. É o que cada um de nós
merece após passar uma vida aqui na Terra. Mesmo não sendo devota
Dagmar acreditava que encontraria todos os seus amigos, parentes,
conhecidos e até amores passados… Seu pai, procuraria por
primeiro. Ai dele se não lhe contasse boas histórias. Quando o
caçula chegou, ainda teve tempo de escutá-lo pedir que desse um
forte e demorado abraço no vô e um enorme cheiro na vovó. Dagmar
abriu um sorriso e descansada partiu. O bisneto enxadrista,
aproximou-se e confidenciou, entre uma chuva de palmas: - Olha, vó,
já sei piscar. Durante o resto da tarde não enjoou de praticar.
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