sábado, 30 de janeiro de 2016

A Piscadela


The Sheer Weight of History, Eric Fischi, 1982



Existe um vigor profundo a ser sentido
ao receber de frente
o vento forte e agudo da compreensão
Richard Dawkins


Cansada, Dagmar abriu os olhos e viu a costumeira sombra na parede à sua frente ao lado do extravagante abaju comprado em brechó num daqueles dias em que costumava sair sem rumo e se deixar levar pela ideia de que a beleza das coisas está na surpresa. Desejo e surpresa tornam a vida vivível. Talvez por isso, não tenha se espantado quando percorreu aquele contorno e sem reservas viu um rosto, um rosto conhecido, o rosto do seu pai. Menos espanto ainda sentiu quando recebeu de volta uma piscadela. Sorriu contente ao ameaçar perguntar se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa, o que andava aprontando, se ainda namorava a mamãe, se estava a arrastar asas para alguma sirigaita? Ruborizada, ficou sem saber se se desculpava por aquela intromissão ou pela desajeitada imitação do típico sotaque materno. Sossegou ao lembrar do significado daquele cacoete. O epílogo de cada história. Contada para dormir, animar o jantar, para iniciar ou continuar uma conversa… Certeza e incerteza são faces da mesma surpresa.

A família se espalhava pela casa, uns na cozinha, outros na sala… crianças em algazarra no quintal, um chorando, outro a fazer birra… Quem não os conhecesse ficaria na dúvida: piquenique, festa de aniversário, batizado? Talvez alguém querido estivesse partindo ou chegando? Quem sabe uma festa de debutante ou algum adolescente passou no vestibular? Um mero almoço de domingo? E logo perceberia que nenhuma ou talvez todas juntas. Era uma festa, oras. Fosse qual fosse o motivo que tivessem para comemorar. No quarto onde Dagmar repousava, após uma longa temporada no hospital, muitas flores, bexigas, cartões, faixa de congratulação e uma dupla, ao lado da cama, a disputar uma concorrida partida de xadrez. Assim que percebeu que a vó tinha acordado o que jogava com as brancas perguntou se tinha feito a jogada certa. Ela levantou um tanto a cabeça, mirou o tabuleiro e piscou, o menino coçou o queixo, refez a jogada e finalmente encarou, desafiador, o adversário.

Vitório já chegou? A filha que acabara de entrar e veio sorridente arrumar a manta e os travesseiros disse que no máximo em meia hora o irmão entraria por aquela porta. – Ah, mãe, tia Ludmila acabou de lembrar, não esqueça do primo Romualdo. Após um breve esforço, Dagmar trouxe à mente o cabelo escorrido e os olhos misteriosos do sobrinho e assegurou que não haveria como esquecer. Uma criança entrou correndo, saltou sobre a cama e escorregou através da janela enquanto dois outros o perseguiam às gargalhadas. - Só não machuquem a mamãe. Dagmar fechou os olhos e ouviu uma obscura flauta embalar o vai e vêm do balanço enquanto voava com os pássaros e as folhas.

Não vejo a hora. O médico ficou por alguns instantes perplexo mas ponderou que talvez estivesse certa. Férias. É o que cada um de nós merece após passar uma vida aqui na Terra. Mesmo não sendo devota Dagmar acreditava que encontraria todos os seus amigos, parentes, conhecidos e até amores passados… Seu pai, procuraria por primeiro. Ai dele se não lhe contasse boas histórias. Quando o caçula chegou, ainda teve tempo de escutá-lo pedir que desse um forte e demorado abraço no vô e um enorme cheiro na vovó. Dagmar abriu um sorriso e descansada partiu. O bisneto enxadrista, aproximou-se e confidenciou, entre uma chuva de palmas: - Olha, vó, já sei piscar. Durante o resto da tarde não enjoou de praticar.  


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