Paulo Autran, Terra em Transe, 1967
“Tudo
é real porque tudo é inventado”
Guimarães
Rosa
“Outrora, os
melhores pensavam pelos idiotas;
Hoje, os idiotas
pensam pelos melhores.
Criou-se uma situação
realmente trágica:
Ou o sujeito
se submete ao idiota
Ou o idiota o
extermina”
Nelson Rodrigues
Conhecido
bandido e contraventor, oriundo da zona do baixo meretricio, batedor
de carteira contumaz, chantagista notório, cafajeste e falso
moralista nas horas vagas, após ser flagrado por deus e todo mundo
com mãos e pés atolado na botija do contribuinte, empreendeu uma
espetaculosa tentativa de escapar a perseguição das forças legais.
Acuado, num ato de extremo desespero, colocou contra o muro a síndica
do Edifício Aurora - condomínio de classe média emergente na
Avenida Central. Sob a mira de arma de grosso calibre, emprestada por bondosos vizinhos que alegam ter contas a ajustar com o passado,
presente e futuro por conta de mágoa causada pelo padrinho da
emparedada, o famigerado meliante mantém a severa, esbelta e
desassombrada vovó no papel de escudo humano desde a tarde de ontem
sob pretexto de salvar as almas do juízo final.
Não
se sabe se por encomenda, vingança, mera jogada de marketing e
compadrio, ou quem sabe diversão – dado o caráter piadista do
marginal alçado à fama nesta temporada sofrível para o humor
pátrio onde vicejam e dão cria as mesmas e surradas anedotas de
antanho travestidas de libertadoras novidades. O fato é que o
delinquente foi visto várias vezes de braços dados, rindo às
despregadas, com o ex-candidato a garoto de praia e competidor no
último sufrágio do paradisíaco edifício. É sabido que tal
mancebo nutre um rancor doentio por conta da derrota que lhe foi
impingida pelas urnas, no último sufrágio. Em todos os botecos das
redondezas, por onde beberica sua costumeira batida de leite de moça
com groselha braba, não há quem não saiba e comente do sonho dele
de ver a rival longe da vista e da praça, por todos e quaisquer
meios possíveis e impossíveis. A contida senhora se diz indignada
com as acusações de maus tratos que lhe são imputadas por aquela
família de assíduos protegidos pelos bambambãs da paróquia que só
pensam naquilo.
Segundo
apurado por esta reportagem, atiradores de elite daltônicos e com
grau de miopia beirando as raias do absurdo, postados em pontos
estratégicos da cidade, aguardam tão somente a ordem que de cima
virá finalmente livrar a humanidade do convívio com figura tão
fedida, abjeta e nefasta. Fontes fidedignas alegam que não haverá
nenhum detalhe que esclareça qual deva ser de imediato o alvo,
justamente para que os agentes se sintam em casa e sigam suas
próprias consciências, conveniências e time do coração, conforme
recomenda a portaria, devidamente registrada em cartório e com firma
reconhecida, afixada na padaria da esquina por ilustres desconhecidos
ciosos dos seus deveres cívicos e extraconjugais.
Em
comovida declaração cheia de erros gramaticais, ketchup e muita
borra de café, asseclas, cupinchas e sequazes reunidos em ordinária
assembleia convocada às pressas para deliberarem quanto ao reajuste
das comissões que incidem sobre as entradas e saídas de cargueiros
de bandeira apócrifa nos postos e pistas seguras da orla, declaram
que o líder é um bom companheiro; pai, irmão, tio, primo, cunhado
e marido exemplar; que jamais deixou de honrar seus compromissos,
mesmo os mais insalubres e escabrosos; que já patrocinou exuberantes
e nostálgicos enredos momescos; e, por conta de um enorme coração,
cheio de humilde generosidade, tem sido alvo de inveja por parte
daqueles que não conseguem sustentar uma boa, singela e honrada
mentira por mais de trinta segundos sem piscar. E prosseguem em
arabescos nodais: “O patrão
possui sim
contas
no exterior, não
porque descreia e execre
o sistema bancário nativo.
Tal conduta é ditada apenas
por motivos securitários, para
que as
frágeis e exíguas merrecas
lá depositadas não sejam
jamais alcançadas
por mãos sequiosas
do que é dos outros
e possam
assim cumprir
finalidade precípua,
ou seja, de
serem usadas
e abusadas tão somente na
distribuição de esmolas, doações,
pequenos trocos, gorjetas
e, principalmente,
o custeio
dos
nanicos
e corriqueiros gastos
da patroa que, a bem da verdade, convém
que se diga, possui o
inocente e incontrolável
vício da pura,
frívola e sagrada
ostentação, devidamente
perdoada pela congregação da qual seu marido faz parte desde que
era criança pequena
e já fazia das suas para
gladio e louvor dos próximos
e chegados”.
Ao final, deixam registrado, para conhecimento da posteridade,
em forma de oração, o princípio de que somente o trabalho
engrandece e premia. Encerram a nota praguejando contra as malditas
muralhas de Jericó que insistem em permanecer de pé a despeito de
suas ladainhas e imprecações. Poeticamente clamam, finalmente, que
recaia sobre as cabeças dos infiéis de todos os quadrantes, cores,
tons e matizes a doce e fria vingança do iracundo deus que lhes é
próprio e sobejo.
Homens
e mulheres de bens que despreocupadamente levavam seus totós para o
cocô diário na via pública, sentindo-se enojados com o odor acre
das ruas mas que por detrás de suas lentes escusas gostam de
imaginar deambularem por priscas plagas (conforme declarou o mais
tímido da turma), disseram não encontrarem absolutamente nada de
anormal em tal procedimento, que já estão acostumados com tal
desfaçatez. - Faz parte da democracia. Além do que está previsto
da constituição a luta pelos interesses particulares, ou não?
Embora facínora, o sujeito em apreço é cidadão humano em pleno
gozo de seus direitos inalienáveis, vociferou uma perfumada senhora
após bater um inofensivo selfie, total e deliberadamente de
costas para o crime. Um senhor que não quis se identificar por temer
represálias, aproveitou para fazer um ligeiro protesto contra o
domínio comunista das nossas instituições e dizer que sente-se
deveras preocupado com a situação dos sofridos e mal pagos
policiais que fazem de um tudo para desviar seus cansados punhos
truculentos da cara de estudantes da escola pública do outro lado da
rua que insistem em permanecer em sala de aula mesmo contra as ordens
daquelas torpidades que os querem fora do prédio para que possam
vender o terreno e assim fazer caixa para o próximo campeonato de
pandorgas, pois é sabido que não mais contarão com dinheiro de
marca ou grana de grife. – Ora, é do conhecimento até do mundo
mineral que não é estudando que se aprende. Quem disse que é assim
que se sobe na vida? Gritou do alto de sua profícua e longeva
experiência o ancião, concluindo sem receio de qualquer desvio: -
Especificamente neste caso, que ninguém nos ouça, o contraditório
deve ser assegurado. Mesmo porque, com relação à alegada síndica,
ainda não é possível dizer que seja inocente de todo. O meu
astrólogo preferido me assegura trovejar nas redes sociais numerosos
e anônimos comentários quanto a comprovada intransigência dela em
relação aos malfeitos dos outros. E os principais jornais não se
cansam de noticiar, está aí pra todo mundo ver e ouvir, que ela,
além de fraudar, por margem ínfima e insignificante, a eleição no
condomínio, perdeu toda e qualquer credibilidade por conta das
pedaladas praticadas no parquinho da praça e colocar em risco a vida
de criancinhas que por ali trafegam nos braços de suas cordiais
babás. Isto não é coisa de mulher honesta, sair por aí, em trajes
menores, montada em veículo impróprio e ainda por cima, a
atrapalhar o trafego. A mim me parece tratar-se de pessoa
absolutamente sem noção, que não tem o que fazer e que, ainda por
cima, é intolerante com os defeitos e imperfeições da natureza
humana, o que é inaceitável numa sociedade baseada na indulgente
condescendência para com as crenças dos outros.
Pesquisa
boca a boca realizada no entorno por fidelíssimo instituto, deu
conta de que o emparedamento, prática comum e corriqueira desde a
abertura dos portões do sanatório geral, por seu caráter sinistro
e maldosamente orquestrado, pode ocasionar, para alegria do mercado
de abobrinhas, uma queda abrupta e significativa da moeda dominante,
o que possibilitaria que mais e mais famílias, de todos os sexos e
profissões, possam aproveitar as adiadas férias de final de ano no
Parque de Diversões do Tio Valtinho num clima gostoso de harmonia e
paz.
Procurado, o vice-sindico, maganão brejeiro e pândego, não quis
fazer nenhum comentário, muito pelo contrário, disse apenas em
poucas, doutas e sigilosas palavras que não está, não estará, nem
nunca esteve de olho da butique dela porém, de mansinho, deixou
escorregar do sovaco uma planilha de reforma da fachada do edifício,
patrocinada uma multinacional do ramo atacadista, poderosa predadora
moderadamente esfomeada, com sói acontecer com uma companhia desse
porte, largura e destreza. Disfarçadamente, para não incomodar o
paquiderme que atravanca a sala, produziu uma manobra, verdadeiro
golpe de cintura, típica de quem paira acima de tudo desde tempos
remotos e, dificilmente conste de qualquer manual e saiu às pressas,
só no sapatinho, a mamar seu maná, em sua metafórica carruagem de
fogo, a cantarolar com sua voz maviosa de baixo-tenor-médio-soprano,
para não acordar os minados pimpolhos encastelados no banco de trás
da van, o sucesso do Paulinho da Viola, Pecado Capital, sob o olhar
discretamente desconfiado do cônjuge do gênero feminino que tinha
hora marcada na manicure para o check-up de praxe.
Escalado
para apagar as luzes do vestíbulo assim que a poeira baixar, o
guarda-noturno, ao chegar atrasado para o trabalho, fez questão de
ser ouvido ali mesmo, na moita. Garantiu aos passantes e curiosos de
plantão que profundas e comestíveis elucubrações entraram em
curso em todos os turnos e instâncias para que solução de
continuidade não afete o recesso político tampouco o bom andamento
dos trabalhos que correm em segredo seletivo de justiça. E
pontificou com escorreito sotaque javanês: Alea jacta est.
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