The Dream,
Max Beckmann, 1921
Barulho
da porta. Carlos Rigot entra sem avisar. Vai direto ao filtro sobre a
pia da cozinha e serve-se de dois copos d’água. Parado no
corredor, acompanho seu corpanzil desgrenhado aboletar-se na minha
poltrona diante da TV. Sento no sofá ao lado. Largo o livro sobre o
tecido empoeirado.
– Fazer
o bem desgasta.
Não
há diálogo. Com ele é sempre monólogo. Mas aprecio. Sempre
aprecio. Gosto e aguardo sua figura saída dalgum romance
indefectivelmente gótico. Ansioso e gasto todo o tempo. Puído em
sua indumentária negra e perene.
– Alguém
a pouco, no ponto de ônibus, me perguntou como chegar à Rua da
Abolição. Relutei mas assenti. Só faltei desenhar. Sabe o que o
mal-agradecido fez? Foi perguntar pro vizinho.
Arrisquei
muito ao mudar minha atitude e dizer que talvez ele não tenha
inspirado a devida confiança.
– Não
inspiro confiança?
– Não…
– Não
ou sim?
– É
que não existe mais inocência.
– Não
existem mais ingênuos no mundo?
– É.
Talvez sejamos todos espertos. Ou fazer o bem faz mal.
– Soa
bem. Posso pegar um copo d’água? O que me ocorreu, meu caro –
disse quase a quebrar um dos copos pousados na bandeja sobre a
geladeira – é que o meu amigo ingrato não entendeu a minha
linguagem ou eu não tenha sabido falar a dele. Somos todos falhos na
comunicação, com a graça de Deus.
Voltou
a sentar-se. Agora no sofá. Afastou o livro e aproximou-se de mim.
Quase a sussurrar no meu ouvido, disse: – Escute. Quer ouvir?
Existe
um acordo entre nós, sobre o qual nunca falamos. Eu o ajudo, ele me
ajuda. Embora nunca seja fácil encontrá-lo. No entanto, dada a
minha natureza, estou sempre disponível no mesmo endereço há mais
de trinta anos.
– É
uma pequena cena. Algo que encontrei na Antologia da Literatura
Fantástica elaborada por Borges, Bioy e Silvina: uma velha narração
do século passado, de um obscuro escritor que morreu na miséria
acreditando que viera ao mundo para fazer o bem sem olhar a quem.
Fiquei
curioso. Ele percebeu e arrancou do bolso um amassado pedaço de
papel. Empurrou na minha direção aqueles hieroglíficos mas antes
que eu começasse a decifrar aquela receita médica, soltou o verbo…
– Conta-se
que, numa tarde, tomando um café num bar de subúrbio, um jovem
escritor defrontou-se com uma figura esquálida que o mirou durante
alguns minutos. Sem resistir, convidou-o a compartilhar um drinque. O
estranho recusou a bebida mas solicitou que lhe ouvisse o sonho da
noite anterior. Queria saber se poderia ajudá-lo a formatar uma narrativa ligeira. Havia algum tempo começara no exaustivo ofício
de contista e como sabia que o outro era um literato não podia
deixar passar a oportunidade de lapidar o estilo. “Parece que
existem muitos pretendentes mas a noiva é uma só”, disse
desajeitadamente. O outro fez uma associação mitológica em meio a
um sorriso condescendente. Foi corda o bastante para que o esquisito
discorresse num fôlego: “Estava num piquenique com a mulher e
filhos. No balneário dos trabalhadores. Na grande vasilha, sobre a
toalha aberta sobre a grama do parque jardim, o melhor da festa.
Servia a todos. Sorridente, reparei,
próximo, dois olhos pedintes. Sem hesitar,
perguntei-lhe se aceitava um
pouco. Os olhos famintos consentiram. Mas faltava
um prato. Ninguém cedeu o seu. Fui até
o restaurante do clube buscar louça e talher.
Demorei na escolha. Por quê? A
indecisão custou-me um quarto de
hora. Ao regressar, vi que a minha
família acabara de devorar os deliciosos e
grandes pastéis. Os últimos. E pra mim,
não sobrou nada? Os olhos esfomeados queixou-se.
Afastado, falava mal. De mim”.
Que acha?
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