Grandmother and Granddaughter
Lovis Corinth, 1919
Definhava
a olhos vistos a menina. Novinha e tão fraquinha, gente. Sem ânimo,
sem cor, sem vida. Pálida e frágil feito folha de papel-arroz.
Pelos cantos, desenxavida, voz sumida, aérea.
Foi
uma gravidez normal. A mãe com saúde, corada, roliça, apetite e
disposição de estivador… Aliás a família inteira gabava-se de
nunca precisar de médico ou remédio. A bisa se fora aos cento e
vinte e cinco ainda enfiando linha no fundo de agulha, bebendo uma
garrafa de vinho e tirando o gosto com fatias generosas de mortadela
com limão todos os dias. Aos domingos era comum, ora na casa de um,
ora na casa de outro, mesas ecléticas, fartas e francas: feijoada,
macarronada, rabada, moqueca, churrasco… Tudo regado a litros e
litros de cerveja, vinho e amistosas jarras de caipirinhas.
No
entanto, o que havia? No começo, achava-se que era dengo, excesso de
mimo. Nos braços de uns e de outros, sempre coberta de carinhos,
agrados e esperanças. Primeira filha em família grande sabe como é.
Aquele monte de tios e tias, primos… A parentada toda de olho na
posteridade: vai ser isso, vai ser aquilo. Mas depois, como explicar
aqueles cambitos no lugar de pernas, aquela cabeça diminuta, aquelas
órbitas fundas e cinzas no alto da cara, aquele cabelo escorrido e
ralo, aquele nariz adunco, aquelas unhas de górgona…?
Corre
praqui, corre prali, exames, receitas, tratamentos, nada, nada dava
resultado. Nenhuma esperança, nenhuma melhora. Apenas gramas e mais
gramas de peso, a cada dia, perdidas. Desse jeito vai sumir, era o
comentário favorito desde então. Comer comia mas, não adiantava.
Estava, como dizia os mais velhos, só pele e osso. O que acontecia?
Que doença era aquela? Pensaram em recorrer às religiões mas
desistiram. O pai desistiu. E fez promessa de buscar uma explicação,
um diagnóstico, uma cura. Por que sua menina, aquele pedacinho de
gente que toda noite dormia em seus braços, sofria? Pobrezinha, que
destino. Pode morrer a qualquer hora. Jamais conheceria as delícias
da vida, do amor, da amizade…
Mas
o mundo dá voltas. Um dia a verdade apareceria, clara, cristalina,
radiante como sol de verão. E o pai obstinado virou, mexeu,
consultou deus e todo mundo. Abraçado aquela maçaroca de papeis e
chapas, resultados de exames, mil bulas, era de praxe vê-lo nos
corredores das faculdades de medicina, clínicas e hospitais de
ponta, a questionar diagnósticos, procedimentos, sugerir pesquisas,
envolver-se em campanhas e voltar para casa arrastando o mesmo
desânimo, o mesmo descrédito, a mesma impotência.
Uma
noite dessas, ao chegar em casa lá pelas tantas, exausto, seguiu até
o gabinete – o quartinho das tranqueiras, como dizia a mulher.
Arriou-se na velha poltrona e quase adormeceu não fosse um
sobressalto. Pareceu-lhe ouvir a voz da filha. Impressão. Mecânico,
ligou o computador e acessou a câmera colocada no quarto da pequena.
Há quanto tempo não olhava aquilo? Instalada logo após o
nascimento, a câmera ajudava a monitorar o sono da criança. Mas
quem se lembrava disso? Há quanto tempo não via as gravações.
Ficou curioso e resolveu assistir a última. Despreocupado, deixou
correr. Que veria? Nada a não ser o corpo da filha num sono
inquieto, um sono agitado, prum lado, pro outro, seu rosto esquálido
em esgares silenciosos. Baixou a cabeça e pareceu buscar forças.
Foi quando ouviu novamente o gemido. Um gemido ou um grito?
Definidamente, um pedido de socorro. Ergueu a cabeça e o que viu
disparou seu coração. Quis gritar mas era tarde. Enquanto todos
dormiam um sono profundo, acabara de sofrer um infarto fulminante,
diria a atestado de óbito. No monitor, quem visse, não acreditaria
na imagem, lutaria contra todos os pensamentos sensatos, não
encontraria uma explicação plausível, estaria diante do
inacreditável e, entre palpitações e engasgos, nos diria que vira
o espectro da enérgica avó (que decidira morar com eles e insistia
em dormir no quarto da neta) a esvoaçar transparente, deformado, gelatinoso e embevecido a lamber e lamber o doce e inocente
corpinho.
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