Theme & Variations Plate #96
Piero Fornasetti
Para você, Mauri.
Porque
a vida é que nem um rio:
espremido entre as margens segue,
sinuoso,
em direção ao mar.
Como explicar? Foi assim,
de repente. Quando a gente não conhece alguma coisa não é possível
imaginá-la. Só pensamos o que conhecemos. Por isso nos assusta a
surpresa. E leva um tempo até que familiaridade se instale, que
aceitemos o fato consumado. Só aí é possível pensar no depois, no adiante.
No inicio, uma dor de
cabeça. Que começou a incomodar daí uns três dias. A ida ao
médico resultou num pedido de alguns exames, uma receita e um
retorno para dali a um mês. Um mês. É um bom prazo. Pra que tudo
volte ao normal ou a gente perceba que o buraco é mais embaixo e a coisa começa a ficar feia.
Batata. Exatos 30 dias
depois, com chapas, exames e uma enxaqueca de matar o guarda, dei
entrada ao hospital mais próximo com um quadro agravado agora com
calafrios e medo, muito medo. Um medo inexplicável. Um medo de tudo.
Um medo até de mim mesmo. O médico que me atendeu pediu calma,
disse que consultaria um especialista e voltaria no final da tarde.
Do leito em que me
encontrava, dava pra ver o corredor. E o que vi me assustou mais
ainda. Macas e mais macas atravessavam o meu campo de visão como um
carrossel. Aquilo que enjoou e gritei pela enfermeira. Nada. Só um
corre-corre generalizado, uns gritos, umas suplicas, ordens, pedidos,
telefones… E a TV ligada num canal religioso: Só Jesus salva, só
Jesus salva, só Jesus salva. Gritei novamente. Mais alto. Senti uma
pontada nas costelas. Uma fisgada. Uma dor profunda. Uma dor em onda,
vindo, vindo, vindo, crescendo, ganhando corpo, meu corpo. Gritei,
gritei… Pedi, implorei, chorei… Rezei, conjurei todas as
possibilidades, ansiei por uma mão, um ombro, uma palavra, algo que
arrancasse de mim aquela dor que parecia vir do fundo do universo.
Sim, aquela dor era universal. Todos e tudo a estavam sentindo. O
universo gritava de dor.
E ali, naquele leite
revirado, quedei. Fechei os olhos e pensei no final. Uma hora a dor
haveria de passar. Sumir. Voltar para o esquecimento de onde nunca
deveria ter saído. Assim são as coisas: nada dura para sempre.
Certo disto, respirei fundo e deixei que minhas mãos chegassem até
o meu peito e que minhas unhas se cravassem sobre a minha pele em
chamas. Gentilmente, meus dedos foram afastando os tecidos e
penetrando até os órgãos, arrancando-os um a um. Um oco tomou
conta de mim. E nem me preocupei mais em respirar, acabara de jogar
meus pulmões na cama ao lado… Meus olhos, minha faringe, meu
estômago, fígado, baço, rins… Tudo, retirei tudo… Ficou só o
oco. E a dor não sumia. Foi então que percebi que tudo vinha do
cérebro. Era ele que estava fazendo isto comigo. Decidi arrancá-lo
também e me joguei de encontro ao chão, Senti meu rosto se
espatifar, e pedaços de mim se espalharem pelo quarto. Tinha me
livrado de tudo e ainda sentia dor.
Que mais me restava
fazer?
Imobilizado, sem vida,
arrastei-me até a janela e senti a luz. Seria uma boa hora
para respirar fundo mas já não me ocorria nenhum movimento
familiar. Perdi completamente a noção de eu. Mas se eu não era
mais eu, quem eu era agora?
Foi aí que pisquei não
com um mas com vários olhos e voei em direção ao sol e não senti
mais dor. Nunca mais.
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