sábado, 30 de agosto de 2014

A Mudança



Theme & Variations Plate #96
Piero Fornasetti



Para você, Mauri.
Porque a vida é que nem um rio: 
espremido entre as margens segue, 
sinuoso, em direção ao mar.



Como explicar? Foi assim, de repente. Quando a gente não conhece alguma coisa não é possível imaginá-la. Só pensamos o que conhecemos. Por isso nos assusta a surpresa. E leva um tempo até que familiaridade se instale, que aceitemos o fato consumado. Só aí é possível pensar no depois, no adiante.

No inicio, uma dor de cabeça. Que começou a incomodar daí uns três dias. A ida ao médico resultou num pedido de alguns exames, uma receita e um retorno para dali a um mês. Um mês. É um bom prazo. Pra que tudo volte ao normal ou a gente perceba que o buraco é mais embaixo e a coisa começa a ficar feia.

Batata. Exatos 30 dias depois, com chapas, exames e uma enxaqueca de matar o guarda, dei entrada ao hospital mais próximo com um quadro agravado agora com calafrios e medo, muito medo. Um medo inexplicável. Um medo de tudo. Um medo até de mim mesmo. O médico que me atendeu pediu calma, disse que consultaria um especialista e voltaria no final da tarde.

Do leito em que me encontrava, dava pra ver o corredor. E o que vi me assustou mais ainda. Macas e mais macas atravessavam o meu campo de visão como um carrossel. Aquilo que enjoou e gritei pela enfermeira. Nada. Só um corre-corre generalizado, uns gritos, umas suplicas, ordens, pedidos, telefones… E a TV ligada num canal religioso: Só Jesus salva, só Jesus salva, só Jesus salva. Gritei novamente. Mais alto. Senti uma pontada nas costelas. Uma fisgada. Uma dor profunda. Uma dor em onda, vindo, vindo, vindo, crescendo, ganhando corpo, meu corpo. Gritei, gritei… Pedi, implorei, chorei… Rezei, conjurei todas as possibilidades, ansiei por uma mão, um ombro, uma palavra, algo que arrancasse de mim aquela dor que parecia vir do fundo do universo. Sim, aquela dor era universal. Todos e tudo a estavam sentindo. O universo gritava de dor.

E ali, naquele leite revirado, quedei. Fechei os olhos e pensei no final. Uma hora a dor haveria de passar. Sumir. Voltar para o esquecimento de onde nunca deveria ter saído. Assim são as coisas: nada dura para sempre. Certo disto, respirei fundo e deixei que minhas mãos chegassem até o meu peito e que minhas unhas se cravassem sobre a minha pele em chamas. Gentilmente, meus dedos foram afastando os tecidos e penetrando até os órgãos, arrancando-os um a um. Um oco tomou conta de mim. E nem me preocupei mais em respirar, acabara de jogar meus pulmões na cama ao lado… Meus olhos, minha faringe, meu estômago, fígado, baço, rins… Tudo, retirei tudo… Ficou só o oco. E a dor não sumia. Foi então que percebi que tudo vinha do cérebro. Era ele que estava fazendo isto comigo. Decidi arrancá-lo também e me joguei de encontro ao chão, Senti meu rosto se espatifar, e pedaços de mim se espalharem pelo quarto. Tinha me livrado de tudo e ainda sentia dor.
Que mais me restava fazer?

Imobilizado, sem vida, arrastei-me até a janela e senti a luz. Seria uma boa hora para respirar fundo mas já não me ocorria nenhum movimento familiar. Perdi completamente a noção de eu. Mas se eu não era mais eu, quem eu era agora?

Foi aí que pisquei não com um mas com vários olhos e voei em direção ao sol e não senti mais dor. Nunca mais.



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