A Vala Comum, Picasso, 1945
Escombros. Gigantesca
metamorfose. Dolorida. Muito. Terramodificação. Novacomodação
tectônica. Titânica. De material, o de sempre: terra, pau, pedra,
ferro, aço, plástico, lixo… De valor, nada. Eletrônicos, carros,
móveis, brinquedos, utensílios domésticos… Tudo gasto,
mincharia, tudo passível de reposição mas, as vidas… Estas, com
muita generosidade imaginativa, reencarnariam esquecidas das dores,
das penas e do destino controverso. Por que somos assim? Tão
instantâneos. Tão descartáveis. Por que nos tratamos assim, se
somos da mesma matéria e desejamos as mesmas coisas? Porém tudo
parece pequeno demais pra nós dois. Então nossa selvageria. Nosso
pasmo apetite, força que nos aglomera neste monstruoso salve-se
quem puder. Nós, mundiça.
Pois é. Dagmar levava
sua vidinha, pra lá e pra cá… Passinho apertadinho, miudinho,
trocadinho… Crentinha em deus e na misericórdia divina que isto é
coisa de se aguardar nestes dias apocalípticos. Deixara, ainda
miúda, a roça ao pé de serra e, agarrada à saia da mãe, deu com
os burros nestas imensas águas pra sentar praça lá pras bandas de
Caxias onde meia dúzia de parentes já se espremiam nos trens da
Central. Não mudou muito. Um tanto mais esquecida, talvez. E toca
pensar na tal promessa ouvida da boca nervosa do Juvenal, seu
ajudante de pedreiro desnutrido de qualquer ilusão de montar casa e
ter um bocado de filhos pra ajudar nas despesas. Melhor esperar ajuda
de cima e, neste ponto, concordavam, andava difícil. Deus tem
demonstrado irritação com as misérias que nós e outros andamos
fazendo pela aí. Perdida a conta de quantas enchentes viveram. E
sobreviveram. Endurecidos. Fazer o quê, se esta última deixara um
cheiro de morte muito mais tempo que as outras? Fedor que insistia em
deitar raízes e subir aos céus seus ramos folhas flores e frutos
encarnados de incontrolável violência. Finalmente o fim do mundo,
um juízo final deveras. Amém.
Foi aí que sentiu o
primeiro espasmo. Que nem descarga elétrica. Tal se tivesse abraçado
um monte de fios descascados. Depois, sentiu engolido um
liquidificador e, finalmente, aquele gosto de sal a escorrer do
nariz. Não se deu conta de mais nada. Era só agonia e eis que uma
voz fininha, fraquinha suspira um exausto cansaço e diz a que veio.
O noivo ouviu em perplexo espanto e, descrente, tratou de buscar na
memória algum adjutório. Conseguiu articular um surrado salmo.
Suspenso, não encontrou luz senão aferrar-se feito náufrago. Mas a
voz, após insistir uma eternidade, extenuada evaporou. Ufa, que
susto, este estranho mal-estar. Que coisa. Será que, de tão fraca,
deixara-se possuir ou estava ficando doida mesmo?
Na manhã seguinte, ao
passar na onde fora uma esquina, onde alguns ainda insistiam em
buscar restos de lembranças, sentiu uma pontada na moleira e caiu em
prantos contorcidos na frente de todo mundo. Seria uma vergonha não
fosse o pedido de socorro vindo do oco de sei lá onde. Um gari
decidiu cavoucar na direção da pista que o grito apontava. Não
custava nada. Renovado, comprovou, batata: havia um corpo ali. Uma
mulher, agarrada ao seu bebê, sufocados os dois, espremidos sob
toneladas de entulho. O que se dava por perdido foi encontrado e pode
ter um enterro decente. Graças. De que jeito Dagmar sabia? Alguém
disse: Os mortos falaram. Os mortos falam através da voz invisível
de Dagmar. Deixa, santinha, deixa os mortos falarem donde estão.
Queremos dar digna sepultura aos que foram cuspidos sem causa justa.
O pastor e o padre
disseram não. Ixe, que nem pensar. Que não se mexe com os mortos.
Que isto é coisa de satanás. Que, se a gente não entende, é
porque deus escreve certo por linhas tortas, estas coisas. Enquanto
as autoridades dizem nada poder, a maioria clama: Dagmar, faça-nos
um favor, filha de deus, traz a voz da minha mãe, do meu filho, na
minha netinha, no meu marido, do meu primo, do meu irmão, da minha
vizinha, do meu conhecido, até do meu cachorro alguém pediu. Que
cansamos de desemparo. Ninguém merece fundir-se ao caos.
Um mar de gente, um
oceano de corpos ressurgidos,
uma imensidão de almas que antes vagavam pelos umbrais da
inexistência puderam ser encontradas, trazidas ao seio dos
agradecidos chorantes. Um a um, Dagmar os atendeu. Aprendeu, na sua
pobreza, a ser solidária. Um a um, permitiu que, de dentro dela,
gritassem, chorassem e apontassem o rumo. Alguns meeiros, outros nem
tanto. Todos tiveram, por último, merecido instante de dignidade. Que
é só isto que nos vale. Louva a Deus, criatura. Que tu és o nosso
consolo.
Porém, de tanto
amanhecer todo mundo, um dia, sem casar, anoiteceu a santinha. Como
se nunca tivesse acontecido. De repente, os mortos sumiram. Ou quem
sabe, a própria morte dera um tempo, desistira. Se não virou
borboleta ou coisinha menor, dizem as boas línguas: bem pode ter
encontrado um sentido pra sua sumida vidinha, agora que voltou aos
vagões sem as vozes e sem Juvenal que, sem morrer, não sabia como
mandar notícias.
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