Alegoria da Bondade, Tintoretto, 1564
Houve uma melhora.
Recordo que quando aprovaram a lei que isentava os idosos do
pagamento de passagem nos coletivos, era um terror. Motoristas
costumavam acelerar quando viam um velho no ponto; faziam cara feia
quando eles precisavam descer pela porta dianteira; reclamavam,
xingavam até… Vi casos de aberta hostilidade: uma mocinha
recusou-se a ceder o lugar para uma senhora, sob alegação de que a
“velha” deveria estar em casa fazendo tricô e não incomodando
as pessoas que trabalhavam. Foi preciso um jovem com aparência de
roqueiro puxar a renitente pela gola de blusa e tudo se encaminhar
para a normalidade. Tempos duros e truculentos, aqueles.
Quanta coisa mudou de lá
pra cá! Hoje, longe de estar aquele conforto todo, já existem os
lugares reservados, o piso dos ônibus foram rebaixados, não
trafegam mais com as portas abertas e, sobretudo, existe mais atenção
com os vovôs e vovós nos coletivos. Vocês podem constatar a
qualquer hora do dia, em qualquer linha desta cidade. É bastante
comum vermos cobradores e motoristas solicitando – em voz alta, às
vezes gritada – que, por favor, cedam lugar ao idoso; que não é
possível trafegar com um velhinho ou velhinha de pé, sob risco de
caírem, se machucarem e a culpa recair sobre quem? Eles, os
responsáveis pelo ônibus.
Pois é, de lá pra cá
muita coisa mudou. Mas mudou por conta de sanções, multas
principalmente. Motoristas e cobradores, aos poucos, foram
abandonando aquela postura de indiferença e descaso muito mais
porque certamente começou a pesar no bolso e não porque pararam e
pensaram que um dia ficarão velhos e gostariam de receber um bom
tratamento.
Mas esta “bondade”
tem lá seus limites. Semana passada, usufruindo do meu novíssimo
cartão de idoso, desci, como faço todos os dias, para o centro da
cidade, a fim de garantir, ainda, o leitinho das crianças. Na altura
das Clínicas, uma mulher com bengala entrou e foi aquele zunzunzum –
todo mundo se mexendo, um tal de olhar pros que estavam sentados e
nada deles se tocarem. O motorista, de olho no espelho retrovisor,
foi logo avisando: “só saio quando esta senhora estiver sentada”.
Empurra daqui, empurra dali, alguém cedeu. E lá fomos em direção
à Paulista, alegre e felizes por termos presenciado mais uma das
muitíssimas manifestações de solidariedade entre nós, mortais
comuns.
Quando chegamos em frente
ao Belas Artes, uma multidão com bandeiras de centrais sindicais
começou a atravessar a Consolação na direção da Angelica. Umas
três mil pessoas – li mais tarde. Em fila indiana. Motoqueiros
logo se aglomeraram em sua área exclusiva, à frente de todos os
carros e deram inicio a um bafafá: abram caminho; vão trabalhar,
vagabundos; isto não é democracia; onde já se viu, impedir o
transito; fora Lula… E foram por aí afora… O motorista ria,
orgulhoso: é isso aí, tem que ir pra rua mesmo ao que o cobrador
vociferava que era um o fim da picada, como é que a polícia não vê
aquilo, deviam descer o cacete naquela cambada de comunista. Não deu
um minuto, quatro policiais da Ronda apareceram e com a costumeira
truculência dirigiam-se agora aos motoqueiros a quem interrogavam: E
se fosse vocês? E se fosse vocês. Meu queixo caiu mais uma vez.
Realmente, o povo
brasileiro não tem nada de simples. Só uma lei nos explica: precisamos de lei.
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