domingo, 20 de janeiro de 2013

Tem dias que a gente se sente o mais bonito dos mortais


Paul Delvaux, Pygmalion, 1939


Besta. Basta um leve agrado e se derrete todo”. Pois é, escuta: ele estava cabeludo e barbudo desde muito, dava por consumado aquele estado de esquecimento a que se submetera sem mais nem menos. Era o clamor do útero, só podia. Quem havia de explicar aquela inveja de todo e qualquer conforto? Nestas condições tudo é motivo de comparações e a perspectiva do fracasso só aumenta o apetite. Pensava: “Com tantas a mimarem irracionais, porque não eu”? Remoía, certo de sua inferioridade em matéria de fofices. O problema era a timidez profissional. Jamais lhe ocorreu: Olha, que tal um pouco de carinho em troca de alguns cafunés?”. Não era prático, não conseguia participar do toma lá dá cá. Para ele não bastava o dia – era preciso mais, era preciso ir adiante, chegar ao outro dia. “É o que eu digo, pra vocês basta um esbarrão que já partem pra cerimônia” trovejou enquanto aumentava o volume da Marisa Monte a entoar Gerânio.

É um bom mote, pra começar vai bem”, disse ela a ensaiar uma severa e lúdica coreografia. “Só precisa evitar a onda de tentar explicar detalhes e lembrar de trabalhar alguma graça que irá nascer à medida que consigas soltar-se sobre o teclado. Enquanto isto, vai aí, de improviso”. E emendou sem ser convidada, certa de que eu pegaria alguma coisa no ar, era este o seu jeito: “Nesta manhã, estava a caminhar, quando pensei em alguns tópicos para te sugerir mas aí começou a chover, chuva fina que tira a gente do sério e pensei em desistir mas a chuva não insistiu e logo fui abordada por um jovem que pediu-me uma informação e fiquei irritada pois o rapaz faz exatamente ao contrário do que ensinei e saí desembestada atrás dele e não consegui alcançá-lo por mais que forçasse o passo e o moço era mais rápido por ser mais jovem e desapareceu perdido e frustrei-me por não tê-lo pego pela mão e conduzido até o local, tão perto era a loja de calçados. Foi aí que percebi que tinha esquecido tudo, que não teria nada para te ofertar, que te encontraria a arrancar os cabelos, a roer as unhas (ela é exagerada), a detestar o fato de ter que ficar andando em círculos à procura de uma história mas aí ocorreu-me que é preciso sempre perdurar o sabor das coisas” e foi pra cozinha como se tivesse acabado de entregar-me o mapa do tesouro.

Gritei: Olha, te imploro: não aguarde mais de mim, aquele ritmo industrial, produção à rodo. Há tempos esgotei meu estoque, nunca mais consegui manter-me um ou dois lances à frente. Lamento. Inegável a falta que faz o armazém sortido, pronto para atender tanto ao freguês costumeiro quanto o eventual (sendo que este exige muito mais da gente afinal, escrever pensando nesse nosso amigo bissexto, havemos de inventar a roda todo santo dia). Ultimamente, tens visto, minha escala de trabalho tem sido assar e comer. Sofro o desafio de enfrentar a página quase que totalmente em branco, não há em mim qualquer premeditação, você sabe. E ela de lá: “A verdade é que, ao leitor pouco se lhe dá, o que ele deseja mesmo é obviamente uma história. De preferência que seja boa. E isto nem sempre se encontra ali na esquina porque em geral elas estão nalgum baú enterrado e esquecido”. De toda maneira ela queria ficar com a razão.

Está bem, feitas estas digressões, vamos aos fatos. Havia uma entrevista. Surgiu assim, de repente. Era preciso dar um trato na figura. Primeiro, cadê o seu Alfredo? Seu Alfredo morreu e com ele se foi o corte barato e aqueles minutos intermináveis a caçar pelos nas narinas e nas orelhas. Que tortura permitir que lhe aparasse as sobrancelhas com uma calma capaz de sacudir os mortos. Cinco minutos no principal, quarenta e cinco no acessório, era seu Alfredo. O desculpável irritante. No entanto, eis o ritual a que se submetia a cada mês. Era ou não um absurdo permitir aquele prazer unilateral? Prazer exclusivo daquele velhote que mantinha, para o nosso desconforto, as histórias mais anacrônicas possíveis, como quando teimava, sem que houvesse qualquer discordância, que Jânio Quadros construiu o Minhocão logo depois do Dia do Fico cometido logo ali à beira da Marginal no ano de 34. E mesmo assim ou apesar disso, seu Alfredo morreu. Ingrato. Morreu, privando-nos da sua água velva batizada com zulu 98. Certas coisas, mesmo ásperas, carregam um dom de saudade. Inexplicáveis. Segundo, não vinha ele a namorar o Salão Milenium fazia tempos? Ele que não conseguia passar sem dar uma olhadinha em direção aquele interior repletos de mãos sedosas e delicadas a proporem satisfação ou seu dinheiro de volta. Era a hora. Eis que a ocasião faz o ladrão.

Continue”. Quanto? Foi fácil. E logo ela o acomodou. “Aqui, venha aqui, devagar pra não escorregar”. E ele foi, como se já fosse comensal e desatou a falar variados assuntos como se fossem íntimos embora não o incomodasse o fato dela não parecer prestar-lhe atenção, ligada estava na execução do oficio, trato que dava assim, despretensiosa, e logo ele achou melhor sentir aqueles dedos sobre o coro cabeludo, de um jeito outro que não era seu Alfredo. Não senhor, ela não iria perder tempo com fios perdidos atrás da orelha. Aquela desconhecida já tão familiar fez com que ele desistisse de querer impressioná-la, tão amigável se mostrou. E quem não gosta? Gostou. Gostou tanto que deixou-se escorrer naquele turbilhão. Fechou os olhos para melhor apreciar a vista, para apreciar a paisagem, primeiro em preto e branco para logo depois assumir uma profusão de cores e possibilidades. Logo, em panorâmica, se viu no café da manhã, ela apenas de calcinha e ele peladão lendo o jornal como se fosse a coisa mais natural do mundo e riu como uma criança riria diante de cocegas. Besta ficou quando ela lhe apresentou a a família, os tios as tias e escarcéu de sobrinhos – não, ela não tinha filhos e aquilo era uma dádiva. E passeou com ela por lugares invulgares e riram e dançaram e caminharam de mãos dadas por ruas carregadas de suspeitas mas ele não estava nem aí pois sabia que ficaria mais besta ainda quando ela o arrastasse para a cama. A cama. Mesmo cansado, aquela cama e aquele corpo, ambos cobertos de pétalas das flores mais cheirosas do mundo o fariam cair e cairia como caiu a boa queda e nunca mais quis levantar-se daqueles braços infinitos não fosse a sirene da ambulância e o vozerio impertinente dos passantes a arrancá-lo do seu amigável refúgio. Não teve alternativa senão ceder à hora e aguardar findasse o corte, para com gosto ofertar gorjeta como se fosse seu normal.

Quando voltou com a tigela de salada ele pediu: leia. Compenetrada, abaixou o volume e acrescentou finalmente: “Tem dias que a gente se sente o mais bonito dos mortais”. Ela me faz feliz, que dizer?


Um comentário:

  1. De repente, parece que este leitor-cobrador se viu nas entrelinhas deste conto-crônica. Escrever é preciso. Viver, talvez, nem tanto.

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