Paul Delvaux, Pygmalion, 1939
“Besta.
Basta um leve agrado e se derrete todo”. Pois é, escuta: ele
estava cabeludo e barbudo desde muito, dava por consumado aquele
estado de esquecimento a que se submetera sem mais nem menos. Era o
clamor do útero, só podia. Quem havia de explicar aquela inveja de
todo e qualquer conforto? Nestas condições tudo é motivo de
comparações e a perspectiva do fracasso só aumenta o apetite.
Pensava: “Com tantas a mimarem
irracionais, porque não eu”? Remoía, certo de sua
inferioridade em matéria de fofices. O problema era a timidez
profissional. Jamais lhe ocorreu: “Olha,
que tal um pouco de carinho em troca de alguns cafunés?”.
Não era prático, não conseguia participar do toma lá dá cá.
Para ele não bastava o dia – era preciso mais, era preciso ir
adiante, chegar ao outro dia. “É o que eu digo, pra vocês basta
um esbarrão que já partem pra cerimônia” trovejou enquanto
aumentava o volume da Marisa Monte a entoar Gerânio.
“É
um bom mote, pra começar vai bem”, disse ela a ensaiar uma
severa e lúdica coreografia. “Só precisa evitar a onda de tentar
explicar detalhes e lembrar de trabalhar alguma graça que irá
nascer à medida que consigas soltar-se sobre o teclado. Enquanto
isto, vai aí, de improviso”. E emendou sem ser convidada, certa de
que eu pegaria alguma coisa no ar, era este o seu jeito: “Nesta
manhã, estava a caminhar, quando pensei em alguns tópicos para te
sugerir mas aí começou a chover, chuva fina que tira a gente do
sério e pensei em desistir mas a chuva não insistiu e logo fui
abordada por um jovem que pediu-me uma informação e fiquei irritada
pois o rapaz faz exatamente ao contrário do que ensinei e saí
desembestada atrás dele e não consegui alcançá-lo por mais que
forçasse o passo e o moço era mais rápido por ser mais jovem e
desapareceu perdido e frustrei-me por não tê-lo pego pela mão e
conduzido até o local, tão perto era a loja de calçados. Foi aí
que percebi que tinha esquecido tudo, que não teria nada para te
ofertar, que te encontraria a arrancar os cabelos, a roer as unhas
(ela é exagerada), a detestar o fato de ter que ficar andando em
círculos à procura de uma história mas aí ocorreu-me que é
preciso sempre perdurar o sabor das coisas” e foi pra cozinha como
se tivesse acabado de entregar-me o mapa do tesouro.
Gritei:
Olha, te imploro: não aguarde mais de mim, aquele ritmo industrial,
produção à rodo. Há tempos esgotei meu estoque, nunca mais
consegui manter-me um ou dois lances à frente. Lamento. Inegável a
falta que faz o armazém sortido, pronto para atender tanto ao
freguês costumeiro quanto o eventual (sendo que este exige muito
mais da gente afinal, escrever pensando nesse nosso amigo bissexto,
havemos de inventar a roda todo santo dia). Ultimamente, tens visto,
minha escala de trabalho tem sido assar e comer. Sofro o desafio de
enfrentar a página quase que totalmente em branco, não há em mim
qualquer premeditação, você sabe. E ela de lá: “A verdade é
que, ao leitor pouco se lhe dá, o que ele deseja mesmo é obviamente
uma história. De preferência que seja boa. E isto nem sempre se
encontra ali na esquina porque em geral elas estão nalgum baú
enterrado e esquecido”. De toda maneira ela queria ficar com a razão.
Está
bem, feitas estas digressões, vamos aos fatos. Havia uma entrevista.
Surgiu assim, de repente. Era preciso dar um trato na figura.
Primeiro, cadê o seu Alfredo? Seu Alfredo morreu e com ele se foi o
corte barato e aqueles minutos intermináveis a caçar pelos nas
narinas e nas orelhas. Que tortura permitir que lhe aparasse as
sobrancelhas com uma calma capaz de sacudir os mortos. Cinco minutos
no principal, quarenta e cinco no acessório, era seu Alfredo. O
desculpável irritante. No entanto, eis o ritual a que se submetia a
cada mês. Era ou não um absurdo permitir aquele prazer unilateral?
Prazer exclusivo daquele velhote que mantinha, para o nosso
desconforto, as histórias mais anacrônicas possíveis, como quando
teimava, sem que houvesse qualquer discordância, que Jânio Quadros
construiu o Minhocão logo depois do Dia do Fico cometido logo ali à
beira da Marginal no ano de 34. E mesmo assim ou apesar disso, seu
Alfredo morreu. Ingrato. Morreu, privando-nos da sua água velva
batizada com zulu 98. Certas coisas, mesmo ásperas, carregam um dom
de saudade. Inexplicáveis. Segundo, não vinha ele a namorar o Salão
Milenium fazia tempos? Ele que não conseguia passar sem dar
uma olhadinha em direção aquele interior repletos de mãos sedosas
e delicadas a proporem satisfação ou seu dinheiro de volta. Era a
hora. Eis que a ocasião faz o ladrão.
“Continue”.
Quanto? Foi fácil. E logo ela o acomodou. “Aqui,
venha aqui, devagar pra não escorregar”. E ele foi, como se
já fosse comensal e desatou a falar variados assuntos como se fossem
íntimos embora não o incomodasse o fato dela não parecer
prestar-lhe atenção, ligada estava na execução do oficio, trato
que dava assim, despretensiosa, e logo ele achou melhor sentir
aqueles dedos sobre o coro cabeludo, de um jeito outro que não era
seu Alfredo. Não senhor, ela não iria perder tempo com fios
perdidos atrás da orelha. Aquela desconhecida já tão familiar fez
com que ele desistisse de querer impressioná-la, tão amigável se
mostrou. E quem não gosta? Gostou. Gostou tanto que deixou-se
escorrer naquele turbilhão. Fechou os olhos para melhor apreciar a
vista, para apreciar a paisagem, primeiro em preto e branco para logo
depois assumir uma profusão de cores e possibilidades. Logo, em
panorâmica, se viu no café da manhã, ela apenas de calcinha e ele
peladão lendo o jornal como se fosse a coisa mais natural do mundo e
riu como uma criança riria diante de cocegas. Besta ficou quando ela
lhe apresentou a a família, os tios as tias e escarcéu de
sobrinhos – não, ela não tinha filhos e aquilo era uma dádiva. E
passeou com ela por lugares invulgares e riram e dançaram e
caminharam de mãos dadas por ruas carregadas de suspeitas mas ele
não estava nem aí pois sabia que ficaria mais besta ainda quando
ela o arrastasse para a cama. A cama. Mesmo cansado, aquela cama e
aquele corpo, ambos cobertos de pétalas das flores mais cheirosas do
mundo o fariam cair e cairia como caiu a boa queda e nunca mais quis
levantar-se daqueles braços infinitos não fosse a sirene da
ambulância e o vozerio impertinente dos passantes a arrancá-lo do
seu amigável refúgio. Não teve alternativa senão ceder à hora e
aguardar findasse o corte, para com gosto ofertar gorjeta como se
fosse seu normal.
Quando voltou com a tigela de salada ele pediu: leia. Compenetrada,
abaixou o volume e acrescentou finalmente: “Tem dias que a gente se
sente o mais bonito dos mortais”. Ela me faz feliz, que dizer?
De repente, parece que este leitor-cobrador se viu nas entrelinhas deste conto-crônica. Escrever é preciso. Viver, talvez, nem tanto.
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