sábado, 11 de agosto de 2012

Esqueletos no Armário


A Inspecção, William Hogart, 1743


O dia era pacato. Na cidade, cada um de nós vendíamos o peixe sob o olhar arguto dos vigilantes do peso. No intervalo, quando o Canal Legal deu em manchete que haviam sido presos meia dúzia de fumantes no Largo das Mercês, temeu-se o pior não fosse o comercial de cerveja ser inédito e contar com a participação do Maior Pegador da Paróquia que, obediente ao roteiro, assume com exclusiva e arguta verve humorística e artística a missão de charlar um trio de incautas numa festa rave de fim de semana em Búzios. Sucesso total... deu nos Jornais (com “J” maiúsculo para diferenciá-los da dita e maldita imprensa marrom e sensacionalista) na manhã seguinte.

Sem que o intervalo tivesse acabado, Hermes levanta-se... Ops, desculpem minha indelicadeza, introduzir assim sem mais nem menos uma personagem sem o devido cuidado de apresentá-lo, que lástima. Data vênia, adiante direi de quem se trata. Por enquanto, devo insistir no meu pedido de desculpas quanto ao fato de enfiar gente na história sem que haja uma boa preparação e tácito acordo previamente discutido com os leitores individualmente. Imperdoável, autoflagelo-me. Por outro lado, sabedor que somos (pelo menos no meu caso em particular posso lhes garantir que tenho plena convicção) através de exaustivas pesquisas levadas a cabo por altíssimos institutos, cujos resultados e consequências são largamente aceitos e atestada por exímios pontas de lança no domínio das belas e úteis artes de bem fazer as coisas, “uma boa história seria apenas uma história não fosse o fato dela prender o leitor”.

Reparem que nesta pequena digressão procuro fornecer algumas indicações que reputo de grande valia a você, leitor atento aos meandros labirínticos que já se desenha a esta altura do conto. Notem que o caminho que desejo trilhar nestas mal traçadas linhas, a conduzir aquele referido personagem que, se não me falha a memória, apareceu cerca de dez ou doze linhas acima (desculpem minha imprecisão, reconheço que a pressa causa imperfeições e tropeços outros geralmente mal interpretados) e, se não me engano, mal teve tempo para dizer a que veio premido pela necessidade de atender algo urgente. Não foi assim? Levantou-se e, podemos deduzir que saiu sem dar qualquer satisfação. O que o fez largar o prato de arroz com feijão ainda quente sobre o balcão? Causa espécie tal atitude, e aqui interrogo: havia algo familiar na notícia? Estou me fazendo acompanhar por ti, racional leitor? É que cansa provocar canseiras. Assim, trago a pergunta que deveria ter sido formulada a uns dois parágrafos atrás: quem é este sujeito que entra e logo sai causando, sem ao menos ter sido apresentado? Pelo exposto, é óbvio que não deixou boa impressão, visto ter reagido de modo insperado e inaudito no momento mesmo em que estávamos todos no intervalo e a Repórter Bonitinha surge numa edição extraordinária do Jornal Televisivo do Meio Dia do Canal Legal avisando que uma trupe de fumantes havia sido presa no Largo das Mercês às dez horas da manhã daquele dia pacato. O que você, perplexo leitor, pensaria se um colega seu agisse de modo absolutamente fora da ordem durante a exibição de matéria jornalistica no telejornal legal do meio dia durante o intervalo naquele dia pacato quase parecido com um sonho de verão? Consideraria uma conspiração? Consideraria a existência dalguma organização criminosa com o fino propósito de seduzir jovens tal qual qualquer um de nós que naquele dia éramos ainda todos jovens aptos a agarrar a vida pelos cabelos e virar as coisas pelo avesso? Ou consideraria a borbulhante imaginação deste que vos fala, envolvida em prós e contras, débitos e créditos, deves e haveres, avidamente ingenua a ponto de tomar gato por lebre nesta selva de cimento, suor e cerveja? Para onde você correria, confuso leitor?

Convém que diga, a bem da verdade, que não faço a menor ideia de quem seja o Hermes. Sim, convivo com ele por cerca de três anos mas daí a dizer que sei quem seja vai uma grande distância. Para ser franco, não sei se é gordo, magro, alto, baixo, preto ou branco. Nos vemos de segunda a sexta mas, e daí? (…) Cada um de nós faz o seu. Entramos e saímos do escritório, não damos bola pra ninguém e somos retribuídos. O que posso pensar de alguém assim? (…) Minuto aí! Não tirem conclusões apressadas, invoco meu direito de ficar calado. (…) Claro, tudo é possível. (…) Sim, é possível que ele tenha esqueletos no armário, quem não os tem, não é verdade? Contudo, posso lhes garantir que a mim ele nunca pediu fogo. Poxa gente, qual é, tenho memória de elefante, podem crer! (…) Como sei? Não sei... ouvi falar. (…) Claro que não, né. Procuro me informar. (…) Está bem. Se que souber de alguma coisa, telefono. Tenho que assinar alguma coisa? (…) Claro que não vou sair da cidade, pra onde eu iria?

Cara, agora fiquei bolado. Quem era mesmo o Hermes, que naquela manhã pacata, quando ainda éramos jovens, durante o intervalo do almoço naquele boteco, no exato momento em que a Repórter Bonitinha leu em edição extraordinária no Telejornal do Meio Dia do Canal Legal uma nota sobre a prisão efetuada pelas autoridades sanitárias, em nome da saúde pública, de meia dúzia de fumantes no Largo das Mercês? E porque ele saiu daquele jeito abrupto, sem dizer palavra, deixando o prato de arroz com feijão e bisteca, ainda quentes, sobre o balcão do boteco? E porque jamais voltou pra contar o final da história?”


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