Diogenes, Johann H.W. Tischbein, 1760
Temia os
ladrões. Como uns e outros temem o pecado. E sabia que não seria
com velas que os manteria afastados. Ladrões não temem rezas.
Ladrões não temem praga. São a própria praga, pensava alto
enquanto perturbava a paz com sua diatribe contra a inveja, essa
miséria. “Se todos que me invejam trabalhassem, este seria o
melhor país do mundo”. E tirava da manga a solução: criar uma
milícia que defenestrasse todos os amigos do alheio (presentes,
passados e futuros) e devolvesse ao homem honesto o controle da
cidade, do país, da nação. “Que saudade da pracinha, do parque
de diversão, das cadeiras na calçada, do footing das
meninas, da fonte luminosa... ai, que saudade do tempo em que seja
possível todas as inocências, mesmo ingênuas e pueris”!,
costumava suspirar pelas quadras afora, o olhar fixo nas pedras do
caminho como se não houvesse amanhã.
Homem
honesto que era. Cuidava da família com o suor do rosto, sem deve
nem haver nada a ninguém. O homem honesto é autossuficiente. Suas
mãos, ferramentas; seus olhos, esquadro; seu tino, formão. Homem
honesto é isto: um triângulo prestes a definir o círculo. Assim
foi educado. Desde pequeno. A dar valor ao trabalho. E à ciência
que faz do trabalho um valor. E justamente por isto não podia dar
mole pra bandido: “Conversa! Ladrão é ladrão, não importa o que
roubou, pra que roubou, por que roubou... tem que pagar com juros o
que surrupiou. Movido pela inveja, maculou o valor do trabalho de
todos os homens honestos.
Ele
incluso. Honesto porém pensante. Sabia a diferença: respeito à
lei. Mas não a lei qualquer. Àquela que permitisse sua consciência
continuar repousando em travesseiros fofos. Isto é esperto. Que
seria ele se desse bobeira pra político, nobre raça de
sanguessugas? Não senhor. Honesto e esperto. Deste modo criou o
pé-de-meia – belo, verdadeiro e bom futuro. Como? Dando seu
dribles, engendrando fintas, porque a vida é que nem partida de
futebol. Se se tomar cuidado com a linha do impedimento, no fim tudo
é possível. Menos roubar. Que roubar é pecado, está na Bíblia. E
como esta linha, na vida, anda meio difusa, é preciso que cada um
cuide do seu quinhão antes que a barbárie de volta nos apanhe. A
vigilância é o preço da liberdade sob pena da vacca vadit ad
paludem, tem-se dito a boca
larga sem qualquer cerimônia e nenhum constrangimento. Assim é.
Por isso
decidiu que, mesmo sozinho, criaria uma milícia que ficasse de olho
no patrimônio – seu patrimônio, é claro, não estava ali para
entrar com a carne e outros com o espeto. E montou a fortaleza. Do
bom e do melhor que o dinheiro pode comprar, daqui e dali. E
enfiou-se dentro dela para de lá só sair muito bem escoltado.
Acontece
que é da natureza humana, desejar o que vê pela frente, ainda mais
se do objeto de desejo recomenda-se distância estando tão próximo.
Uma hora vai que, olha para os dois lados e, vendo que ninguém vê,
passa a mão, porque o que os olhos não veem o coração não sente.
É preciso ser forte, ter altos desejos para não cair na tentação
da maçã que envenenou a nossa curiosa, descuidada e tagarela Branca
de Neve (ou seria Sara?).
Sem tanta
digressão, veremos que ele podia ser honesto e esperto mas não
conhecia nada de ser humano. Deixando à mostra apenas o estritamente
necessário para manter o tratamento de doutor, mais estacionamento
privativo nos melhores shoppings da região, presumiu-se
seguro. Aliás presumiu segura sua fortuna – toda ela empenhada em
papeis, obras de arte, pedras e metais preciosos, bem guardados em
cofres fortes, longe do alcance das mãos e olhos dos mexeriqueiros
oficiais ou não, em tempos da alta rotatividade das finanças
globais do tipo que não podem ficar um só dia sem cutucar a onça
com vara curta só pelo gostinho de ver a cobra fumar, tal qual uma
teenager fissurada em moda com duas ou três amigas cujos pais podem.
No posto
de tenra isca e robusta a serpente, cevada em agrados desde quando
necessitou adiantar-se aos reveses da fortuna patrocinado por
potentes inimigos juramentados em cartórios de serventias, não viu
saída senão trancar-se no quarto do pânico, construído para
resistir a um cataclismo. Que teria preferido a. A década que passou
aprisionado naquelas quatro paredes (metro e meio de titânio
reforçado) foi mais que suficiente para que a milicia (tão
laboriosamente imitada como sói acontecer com mercadoria altamente
rentável), agora conseguido o beneplácito da mídia sequiosa de
pregações monopolistas, com base em documentos caprichosa e
milimetricamente forjados (além de vários pescoções, de acordo
com certa ótica bem aplicados, em alguns porta-vozes da
impessoalidade nos negócios e sustentabilidade das ações), tomasse
conta do império e instituísse a lei de talião como o suprassumo
do novo ordenamento jurídico que, ultrapassado o limite do privado
apossou-se do público ávido por desforras e algumas casquinhas. Não
durou meia hora. Milícia rival agigantou-se e, em nome da moral e
dos bons costumes, desbancou aquela esbórnia até o próximo pregão
da Bolsa dos Nove Foras. Voltou-se para os ladrões de galinha, para
os pés de chinelo, mas aí já era tarde demais. Ladrão de galinha
não havia. Apenas altas celebridades.
Acho que estou conhecendo a geografia onde esta parábola se localiza. Ou estarei errado?
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