www.mdig.com.br
“Senhoras
e Senhores,
apresento-lhes
um fenômeno musical único,
aquele que
nos tem dado o melhor de si,
um artista
que sabe se entregar no palco:
Monsieur Le
Pétomane”.
Mestre
de Cerimônia
no palco
do Moulin Rouge,
final do
séc. XIX,
referindo-se
a Joseph Pujol (1857-1945)
Meu avô
peidava. Peidava com gosto e arte. Tinha lá seus expedientes para
encobrir o fato, mais por mofa que por recato – não havia como
esconder o indisfarçável, já que seu peido possuía cor, tom,
textura, massa, forma: peido verdadeiramente tangível. Ao ser
desencadeado, o ambiente era tomado por uma espécie de comoção,
uma socialdemocracia fisiológica, digamos assim, um reino de bem e
mal estar. De mal, pode-se deduzir, por conta do odor sectário que
impregnava tudo, compelindo todos buscarem sítio a salvo daquela
excruciante bomba moral, tarefa quase impossível; de bem,
evidentemente, pela hilaridade provocada, pelo nivelamento
emocional... Em outras palavras, apesar do desconforto, naqueles
instantes tínhamos a sensação de sermos uma família, uma família
feliz.
E sempre
buscava uma forma de coroar seu desabafo. Algo que nos fazia acreditar na sua capacidade de zombar de si e do mundo. A cada ribombar, ao mesmo tempo que procurávamos nos
evadir, aguardávamos borbulhantes o desfecho. Ora, os mais novos se sentiam ofendidos com a revista da palma das
mãos para ver se estavam amareladas, ora as meninas eram tomadas de
arrepios com os cheiros nos cangotes para descobrir de qual provia o
cheiro, enquanto os mais velhos punham-se a especular cínicos qual viga da
casa estalara, qual móvel rangera, qual árvore tombara. Minha vó
apenas resmungava, entre dentes, num tímido sorriso seco, quase a
incentivar as gargalhadas: “Ora, seu Antônio, que coisa feia.
Dê-se ao respeito”. Então metia as mãos nos bolsos e assobiava
qualquer coisa de travesso.
Ninguém faz a menor ideia do que tenha sido seu tempo de menino.
Minha tia, filha do meio, arrisca alguns pitacos. Infelizmente minha
mãe não os endossa. E ficam as duas, numa interminável disputa,
cada uma exibindo suas criações: o pai que viram, o pai que
tiveram, o pai que sonharam... Quanto a mim, tenho dúvidas se um dia
nascera. A lembrança que tenho do meu avô, a lembrança que me
ficou, é a de um gigante homem velho, cabeça branca, olhos azuis,
rosto vincado, boca banguela e uma incrível
capacidade de fazer os outros prestarem atenção nos seus chistes e
improvisações. Para mim, meu avô nunca foi menino. Ademais, como
alguém sem passado pode ter nascido? Fomos privados disto, ele nunca
tocou no assunto. Por isso digo que meu avô surgiu sem nenhum
antecedente. Geração espontânea. E assim, da noite para o dia,
sumiu... Encantado. Como contava as coisas, ele que não sabia juntar
o “ó” com “có”, como contava histórias, histórias do
arco-da-velha, todas de arrepiar?! Descobri mais tarde que o medo
educa e o fascínio preserva.
Era
politicamente incorreto, meu avô. Já naqueles tempos onde isto
ainda não tinha sido inventado para encobrir hipocrisias. Detestava
negros, índios, estrangeiros, militares, padres e todo e qualquer agente de qualquer governo. Escola: apenas o suficiente
para escrever o nome e fazer as quatro operações. O bastante para o
seu comércio de miudezas. Filha sua não trabalhava fora, não ia a baile, não namorava
longe dos seus olhos e nem escolhia pretendentes. Nos filhos homens,
deteve o direito de chicoteá-los por todo e qualquer deslize até
quando casados e pais de famílias. Ninguém nunca o viu dar um beijo
na minha vó, fazer um carinho nas crianças. Era de se pensar que
ganhara os seis nalguma negociação com mascates, tropeiros e
tabaréus que arranchavam no eito da sua casa todo dia de feira. Mas
nem isto era possível, visto tratar melhor coisas que pessoas.
Poderia alguém imaginar minha vó fazendo qualquer afago naquele
homem irascível capaz de surrar um filho ou filha apenas por tê-lo contrariado levemente? Talvez por não sentir-se sério, meu avô
tivesse aqueles excessos e se apresentasse, vez por outra, como um
louco desvairado, determinado a acabar com tudo e com todos. Pelo
menos essa foi a impressão que minha vó carregou até o fim dos
seus ligeiros dias. Aí a agonia acabou. Ou teria findada a graça?
Meu avô possuía todos os defeitos do mundo. Todos, menos um: nunca
fingiu ser o que não era. Sempre foi autêntico instinto, puro
animal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário