sábado, 30 de junho de 2012

O Flautulista


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Senhoras e Senhores,
apresento-lhes um fenômeno musical único,
aquele que nos tem dado o melhor de si,
um artista que sabe se entregar no palco:
Monsieur Le Pétomane”.

Mestre de Cerimônia
no palco do Moulin Rouge,
final do séc. XIX,
referindo-se a Joseph Pujol (1857-1945)



Meu avô peidava. Peidava com gosto e arte. Tinha lá seus expedientes para encobrir o fato, mais por mofa que por recato – não havia como esconder o indisfarçável, já que seu peido possuía cor, tom, textura, massa, forma: peido verdadeiramente tangível. Ao ser desencadeado, o ambiente era tomado por uma espécie de comoção, uma socialdemocracia fisiológica, digamos assim, um reino de bem e mal estar. De mal, pode-se deduzir, por conta do odor sectário que impregnava tudo, compelindo todos buscarem sítio a salvo daquela excruciante bomba moral, tarefa quase impossível; de bem, evidentemente, pela hilaridade provocada, pelo nivelamento emocional... Em outras palavras, apesar do desconforto, naqueles instantes tínhamos a sensação de sermos uma família, uma família feliz.

E sempre buscava uma forma de coroar seu desabafo. Algo que nos fazia acreditar na sua capacidade de zombar de si e do mundo. A cada ribombar, ao mesmo tempo que procurávamos nos evadir, aguardávamos borbulhantes o desfecho. Ora, os mais novos se sentiam ofendidos com a revista da palma das mãos para ver se estavam amareladas, ora as meninas eram tomadas de arrepios com os cheiros nos cangotes para descobrir de qual provia o cheiro, enquanto os mais velhos punham-se a especular cínicos qual viga da casa estalara, qual móvel rangera, qual árvore tombara. Minha vó apenas resmungava, entre dentes, num tímido sorriso seco, quase a incentivar as gargalhadas: “Ora, seu Antônio, que coisa feia. Dê-se ao respeito”. Então metia as mãos nos bolsos e assobiava qualquer coisa de travesso.

Ninguém faz a menor ideia do que tenha sido seu tempo de menino. Minha tia, filha do meio, arrisca alguns pitacos. Infelizmente minha mãe não os endossa. E ficam as duas, numa interminável disputa, cada uma exibindo suas criações: o pai que viram, o pai que tiveram, o pai que sonharam... Quanto a mim, tenho dúvidas se um dia nascera. A lembrança que tenho do meu avô, a lembrança que me ficou, é a de um gigante homem velho, cabeça branca, olhos azuis, rosto vincado, boca banguela e uma incrível capacidade de fazer os outros prestarem atenção nos seus chistes e improvisações. Para mim, meu avô nunca foi menino. Ademais, como alguém sem passado pode ter nascido? Fomos privados disto, ele nunca tocou no assunto. Por isso digo que meu avô surgiu sem nenhum antecedente. Geração espontânea. E assim, da noite para o dia, sumiu... Encantado. Como contava as coisas, ele que não sabia juntar o “ó” com “có”, como contava histórias, histórias do arco-da-velha, todas de arrepiar?! Descobri mais tarde que o medo educa e o fascínio preserva.

Era politicamente incorreto, meu avô. Já naqueles tempos onde isto ainda não tinha sido inventado para encobrir hipocrisias. Detestava negros, índios, estrangeiros, militares, padres e todo e qualquer agente de qualquer governo. Escola: apenas o suficiente para escrever o nome e fazer as quatro operações. O bastante para o seu comércio de miudezas. Filha sua não trabalhava fora,  não ia a baile, não namorava longe dos seus olhos e nem escolhia pretendentes. Nos filhos homens, deteve o direito de chicoteá-los por todo e qualquer deslize até quando casados e pais de famílias. Ninguém nunca o viu dar um beijo na minha vó, fazer um carinho nas crianças. Era de se pensar que ganhara os seis nalguma negociação com mascates, tropeiros e tabaréus que arranchavam no eito da sua casa todo dia de feira. Mas nem isto era possível, visto tratar melhor coisas que pessoas. Poderia alguém imaginar minha vó fazendo qualquer afago naquele homem irascível capaz de surrar um filho ou filha apenas por tê-lo contrariado levemente? Talvez por não sentir-se sério, meu avô tivesse aqueles excessos e se apresentasse, vez por outra, como um louco desvairado, determinado a acabar com tudo e com todos. Pelo menos essa foi a impressão que minha vó carregou até o fim dos seus ligeiros dias. Aí a agonia acabou. Ou teria findada a graça? Meu avô possuía todos os defeitos do mundo. Todos, menos um: nunca fingiu ser o que não era. Sempre foi autêntico instinto, puro animal.


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