Cobra Grande, Ilustração de Laerte Silvino, 2009
No
principio, a noite existia mas ninguém conhecia. Era sempre dia e
ninguém dormia. Mareneíma, da tribo Tapuia, caiu na besteira de se
apaixonar por um caraíba. Seu pai não gostou nadinha daquele
ramerrame. Usou seus poderes mágicos. Transformou a filha numa
imensa sucuri. Maraneína, muito triste com aquela separação, num
ato de vingança, carregou a noite pro fundo do rio Amazonas.
É por
isto que o povo da floresta morre de medo de sucuri. Quando vem à
tona, não poupa vivente, derruba barrancos, encalha navios. Não
existe canoa forte que resista aos seus ataques. Diante da Cobra
Grande, todo valente agoniza de fraqueza.
A linda e
meiga Cunhapora crescera sob os cuidados do avô, longe da mãe.
Quando chegou a idade de casar, recebeu dele a benção. Aimberê,
foi escolhido. Moço forte e bonito, irmão de Cauré. E foram viver
na maloca da família de Aimberê.
Cauré e
Aimberê não eram gêmeos mas o que um sentia o outro sentia também.
O que um queria o outro dizia amém. Para onde Aimberê se movia, lá
estava Cauré. Se Aimberê ia caçar, Cauré ia junto. Se Aimberê ia
tomar banho, Cauré ia também. Se Aimberê ia pro matinho, Cauré
dizia: me espera!
Aquilo
passava por fraternidade. Mas com o tempo, o grude virou problema.
“Vai ver se estou na esquina, Cauré”, pedia Aimberê.
“Mas na floresta não tem esquina, Berê”, sorria o irmão.
“Então vá passear na praia que quero muito dormir”,
respondia Aimberê. “Mas a noite não existe”, retrucava
Cauré. E Aimberê se punha a matutar num jeito de ficar sozinho com
Cunhapora. A vontade de dormir bagunçava seus pensamentos. “Dormir
pra que?” Cauré resmungava. “Quando a gente dorme a alma
da gente vai embora. Eu não, não quero saber dessa besteira de
dormir. Quando a gente morre, dorme pra sempre”.
Antes de
partir para o fundo do rio, M'boia Açu prometera à filha um lindo
presente. E até aquela data, necas de pitibiribas. Aimberê puxou
Cunhapora pro lado e lembrou-lhe da promessa feita pela sogra. Cauré
buscaria a encomenda e assim ficariam sozinhos para brincar.
Cauré
aceitou a tarefa contente da vida. Afinal, faria qualquer coisa por
aquele irmão. Gostava dele e fazia de um tudo para não vê-lo
aporrinhado. O irmão era o irmão, o que não pedia chorando que não
fizesse sorrindo? Pegou a canoa, jogou dentro um porção de frutas
e, seguiu ao encontro da temida Cobra Grande.
Quando
estava muitas léguas rio acima, na beirada do poente, M'boia Açu
aflorou. Com sua imensa cauda, deu três lapadas na superfície da
água. Cauré quis gritar mas resistiu. E engrolando as palavras
disse: “Vim a mando de Cunhapora”. Ao ouvir o nome da
filha, Cobra Grande sossegou. “Vim buscar o presente de
casamento que você prometeu. O marido dela quer muito dormir. Não
sei pra que, mas parece que a sua filha também quer”. O rasgo
que servia de boca à serpente de repente escancarou. Cauré pensou:
vai me devorar. Mas o que
ouviu foi uma risada gostosa de quem aparenta satisfação. M'boia
Açu disse: “Espera aí que vou ali e volto já”.
E não
demorou segundos, estava de volta à tona com um coco. “Está
aqui o que minha filha precisa. Mas olhe, tenha cuidado, não abra. O
buraquinho foi muito bem tapado com cera de uruçu. Se for aberto,
todas as coisas se perderão. E você vai junto, zoiudo”. Com
ânimo reforçado, Cauré atalhou: “Não precisa se preocupar,
M'boia Açu. Sou sujeito reservado”. E a Cobra Grande olhou bem
no fundo dos seus olhos: “É bom que seja assim, senão... Agora
vá, diga à minha filha que meu coração já está mais aliviado. O
fato de você vir aqui é a prova de que, pelo menos ela, ainda gosta
de mim”. E mergulhou num rompante que levantou uma onda do
tamanho de uma casa. Cauré segurou-se nas bordas da canoa que
deslizou ligeira na direção do nascente.
Faltando
metade do caminho para chegar à aldeia, Cauré reparou num bocado de
ruídos estranhos. Assuntou donde vinham mas não viu nada que se
assemelhasse. Os ruídos continuaram. Assuntou de novo e notou que
vinham de dentro do coco. Aquilo só podia ser presepada de M'boia
Açu. Pegou o coco e encostou o ouvido. Sim senhor, vinha de dentro
do coco aquele monte de ruídos. O que será?, o que será?... Pensou
que se fizesse um furinho podia saber do que se tratava. Olhou pra
frente, pra trás, para os dois lados do rio e, com a ponta da unha,
retirou um tantinho da cera. Foi o bastante. A noite saiu em revoada
e cobriu toda a terra. Cauré acudiu pedir socorro mas, da sua
garganta, em vez de voz o que saiu foi grunhido. Cauré não era mais
Cauré. Cauré agora era macaco.
Na aldeia
todos foram pegos de surpresa. Não sabiam que a noite era daquele
jeito: ruidosa, cheia de barulhos estranhos e assustadores.
Receosos, cada um cuidou de procurar um buraco onde se enfiaram até
que aquelas visagens desaparecessem. Cunhapora falou: “Cauré
fez bobagem. Não era pra noite vir assim”. Aimberê,
satisfeito, não queria saber de mais nada, queria o que sempre quis
desde que conheceu sua amada. “Vem, Cunhapora, vem, vamos
dormir”. E não notou que o cesto onde guardavam mandioca havia
se transformado em onça; os gravetos que iam começar o fogo, agora
eram lagartixas; a tigela onde preparavam o cauim, se mexia que nem
tatu; os galhos das árvores viraram corujas; e as pedras na beira do
rio metamorfosearam-se em sapos e rãs.
“Não
posso. Preciso dar nome as coisas. Senão tudo vai ficar perdido e a
gente nunca vai conseguir encontrar coisa alguma”, disse
Cunhapora. E no assento da palavra, com aquela escuridão
tomando conta de tudo, foi chamando cada coisa pelo nome que lhe
vinha à cabeça e, a medida que atendiam, soprava-lhes na boca a voz
de cada um. Assim fez até que a noite sossegou e, finalmente, todos
puderam dormir. Nove meses depois, Aimberê e Cunhapora ganharam de
presente um belo kuru'mi que ri muito cada vez que a mãe lhe conta
esta história.
E quanto a Cauré? Bem, passado um tempo, cansado de viver de galho
em galho, voltou para a aldeia e foi destranformado. Mas sabe-se lá
porque, daquele dia em diante, só consegue dormir com um olho aberto
e outro fechado.
Bela lenda, com uma pitada de humor!
ResponderExcluirObrigada por ter me dado força meu amigo; foi muito bom tudo que disse, Deus o abençoe sempre!
ResponderExcluirLogo voltarei a compor, graças a vcs todos que lá estiveram; é mt saber que temos amigos sinceros, faz mt bem a alma!
Um grande bjo no core!!!
Gena
Poxa sinto saudades de quando montei essa lenda com teatro de bonecos, adaptação do mestre Paulo Deo! Vamos que vamos, viva as lendas, viva o Teatro, viva o mestre!
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