Vertigem, Inam Maleki, 1998
Ouvi de
Rigot. Disse-me num fim de tarde plácida com promessa de noite fria,
enquanto saboreávamos um cafezinho fumegante num sujinho em pleno
Largo do Paisandú nem aí para a hora, preocupados estávamos em
esticar ao máximo nossa conversa até que aquela maioria afobada
tivesse se enfurnado sabe-se lá adonde que merecesse tamanha pressa
e nos permitisse um lugarzinho pra sentar a caminho de casa no
coletivo.
E disse
mais. Que foi Chexa - alagoano falador, pleno de mumunhas e
mungangas, lá pros idos dos 80, num boteco à beira da Lagoa Mandaú
- quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo
contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca
do muito admirado (inclusive seu) doutor Diógenes e que, no seu modo
troncho de bendizer as coisas, bem podia ter sido provocada pelo
consumo de alguma droga com alto poder de sedução.
Vício
que todos nós temos, acrescentei quase queimando a língua.
Assoprei: sempre colocamos aquele tempero, uma pitadinha de não sei
quê, um colorido local, uma voz próxima, àquilo que, a troco de
passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta
necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa
vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que
quem a conte consiga nos convencer de uma nesga de verdade. A loucura
mais improvável deve ter motivos e consequências o mais familiar
possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história
pouco importa. Importa mesmo como é contada.
Minha
observação não afetou em nada meu velho amigo Rigot, preocupado
estava em afastar algumas moscas que festejavam migalhas no canto da
sua boca, o que enlouqueceu-me ainda mais. Não com as muscas mas
com aquele negócio de fogo fátuo, lágrimas de fogo caindo do céu
suave e lentamente numa noite tormentosa e memorável. Ele tinha o
poder de deixar-me embatucado. Não costumava seguir uma lógica
linear, de causa pra consequência mas, ia aos pulos, de trás pra
diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava
acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, agravadas por
esta minha atávica tendência ao conformismo, quase sempre eu perdia
boa parte dos seus relatos. E como tinha me proposto a colocar no
papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e
tentar acompanhar suas aventuras era quase como mergulhar no mais
profundo dos abismos, sem nenhuma garantia de retorno. Mas lá ia-me
a criar-me embaraços. De onde tinha surgido metáforas tão
plausíveis? Quem era esse tal de doutor Diógenes? Rigot disse
sossega, vamos andando que até o meio da Consolação você vai
compreender aonde quero chegar. Tinha investigado. E então?
Continuou meio enviesado pelas razões anteriormente expostas mas com
visível esforço para tranquilizar-me: doutor Diógenes foi-me
apresentado três dias depois daquela noite, na praça do Mercado.
Seu consultório particular. Toda segunda, quarta e sexta, distribuía
entre os mercadantes e quem mais o procurasse, auscultações e
receitórios a troco de bacia de verduras, talhada de melancia, meia
dúzia de ovos, mei litro de feijão... Não que precisasse,
precisava não! Aceitava. Sabia que ninguém gosta de dever favor a
ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam
aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele
catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar
com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém
escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas,
para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios
mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e
maledicências.
Tá.
Legal. Um altruísta que sabia contar histórias! É só? O que quero
saber é porque ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado
pela impaciência por não entender o fato de termos desistido de
pegar o ônibus e haja visto minhas panturrilhas encontrarem-se em petição
de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos
queriam, rangeu Rigot. E gostavam, oras. Tanto que repetiam ipsis
litteris. E ai daquele que
tentasse mudar uma vírgula - caiam de pau no contador pelo
atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor
Diógenes contou, justiçavam. Tentei adiantar-me mas fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão,
agora que estamos perto do extinto Belas Artes e cada um pode seguir
pro seu lado. Paramos e ele aproveitou: já no fim da vida, preocupado
1) com aquela unânime celebridade em torno de si e da sua única
história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por
dever de oficio ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade
de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea,
sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns,
clichês e cânones lítero-conversatórios, doutor Diógenes decidiu mudar aquele estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar
individualmente a mesmíssima história só que para um modificada em
uma frase, pra outro uma variação da paisagem, praqueloutro uma
entonação... e assim, aos poucos, sua história, aquela história
tornou-se vária, a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo
novo e original.
E vão-se as histórias sendo contadas, recontadas, com seus pontos a mais. É um dos prazeres que se tem: contar histórias.
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