Pintura em Vaso, Grécia, 500 a.C
Após
vasto tempo, não sei quanto mas não uma eternidade, encontro Rigot.
Carlos Rigot. Pensei tê-lo esquecido. Não sabia o que dizer. Fiquei
encabulado. Que puxasse assunto, fingiria ocupação. Mexi daqui,
dali... Rigot espera. Aguarda até que eu pare. Então começa.
“A
missão era simples. Vasculhar cada canto à procura do ou de
dinheiro. Dinheiro, sim senhor. Impossível não haver dinheiro. E se
havia dinheiro, era para ser encontrado. A ordem era não deixar
pedra sobre pedra, que passasse pente fino, que filtrasse cada
milimetro e, prestasse atenção: imperativo encontrar dinheiro.
Fui
rápido. Solução também simples. Inundei o lugar. Fiz com que
tudo passasse por um duto. Do tamanho do meu campo visual, a saída. Observei
cada insignificância que desfilou através do filtro. Longa vigília.
Horas e horas, diligente, vigilante. Tudo escoou, escorreu e nada,
nada do ou de dinheiro.
Que
mereça nota? Nada, já disse. Embora uma velha gaveta, desavisada,
tenha revelado um primitivo mecanismo, um modesto aparelho, mas nada
relevante, diria pueril por não possuir qualquer engenho ou arte.
Ah, sim, jornais, velhos, muitos, empilhados mas não mereciam o
cuidado de lê-los. Pura tinta, tóxica. Além disso, nada. A não
ser... espere, recordo... a não ser aquele velho revolver, Colt 45
prateado. Madrepérola, o cabo. Uau! Reluzia assim como algo que...
Trazia-me à lembrança qualquer coisa sobre. Pertencera aquela arma
a uma grande artista norte americana – cantora, mais precisamente -
que ninguém mais lembrava o nome? Como esquecemos rápido as coisas,
pensei e isto causou-me certo desalento mas logo me vi obrigado a
retornar, pois era como houvesse encontrado ouro ou experimentado uma
epifania.
Não é
que o objeto levou-me retroceder até aquela luzinha que havia sido
acesa lá no fundo, lá longe, lá dentro? Manipulei a arma com
desenvoltura, com gosto, com genuíno prazer, como um cowboy, um
autêntico cowboy hollywoodiano, autêntico porque único com
estatuto de verdade, lembrei-me repleto de auto confiança.
Um bom
par de horas passou-se. Só então o brinquedo desistiu de animar-me.
Inútil, desprezei-o não sem antes viver uma certa relutância:
ocorreu-me lembrar de alguns desafetos. Mas passou. De volta,
confortei-me com a possibilidade de que talvez algum museu pudesse
interessar-se pela peça. Valeria quantos trocados? Trocados era tudo
que eu precisava para resolver duas ou três pendências que ainda me
mantinham preso àquele emprego e àquela cidade.
O
revolver. Não o guardei para mim, não o escondi no bolso, não
havia como. Daí desejar pensar melhor. Com mais propriedade, cabeça
fresca. Queria relacionar alguns fatos e, sobretudo, algumas versões
que circulavam com bastante insistência com ares insuspeitos de
propriedade. Ansiava verificar a possibilidade de nunca possuí-lo. É que talvez nunca devesse tê-lo olhado. Talvez nunca devesse sequer tê-lo
descoberto, sabido seu propósito, sabido usá-lo. Se usei? Não, não
usei. Alguém falou que usei? Absurdo. E digo: intrigas. Tranquilo,
aguardo.
Se estou
a colocar-me memórias, memórias que nunca tive, apenas para
jactar-me, como fazem os cowboys? Como assim? Você diz, invasores de
corpos, é isto? Deus, sempre os gringos e seus filmes. Os cowboys de
mentira que viraram de verdade. A prova viva de que o mito precede,
procede e propaga. Lembra da ilha, do eldorado, hybrasil, avalon, sei
lá que outros tantos nomes, todos frutos da indigência, da recusa
ancestral, do desgosto com esta terra sem encanto? Deve existir outra
que não esta terra de dores, eu penso, só não sei onde. Deve ser
lá. Lá é muito melhor. Lá é sempre melhor que aqui. Preciso de
asas, sacou? O chão não é e nunca foi o meu lugar. Aqui não é o
meu lugar. Não quero estar aqui, nunca. Por isto choro, peço e
berro. O resto são lembranças, algumas sim outras não. Todas
cruéis. Mas não quero pensar nisto agora. Devo continuar adiante,
continuar minha busca. Certeza? Só quando alcançar a prova. Onde eu
estava?
Olhe,
sim, pois não é que surgiu? Eis que surgiu, no meio de panos
envilecidos, a prova. Vi o que alguns diriam dúvida. Mas, para mim,
sim senhor, prova. A única prova. Cabível. Irrefutável. Que? Um
maço de cartas. Velhas. Amassadas e dobradas como se dobra dinheiro.
Embrulhadas em papel jornal. Fita vermelha? Não, não havia. Não
tem nada de romântico nesta história. Era um pacote. Que pensei a
princípio tratar-se do dinheiro, daquele dinheiro que me foi dito
estar escondido, que bastava olhar com olhar aguçado acabaria por
encontrá-lo. Por isso meu coração pulsou, por isso ri, novamente,
mais alegre, esperança recompensada, sabe como é? Mas era tudo
letra. Dele, dela, sei lá. De dois. Dos dois, a conversa. Abri.
Antiga. Passada a limpo. Uma em especial. Li rápido. Exasperava-me a
necessidade de continuar a busca, de ter que partir. Comprovei que
senti tantas, as águas passadas. Que eram iguais. Que não havia
alcançado o fim, que tinha ainda de partir. Que era tempo. Que
longas horas pesadas ali. E enquanto lia a letra miúda, quase
desenho, desenho ágil, nenhum rabisco, perguntei se algum toque de
perfume havia. Não pude lembrar, não quis lembrar, também não
quero lembrar agora. Apenas segui a linha que parecia saber o que eu
sequer imaginaria. E a letra era como se fosse minha. A letra
miudinha. Nadinha.
Diga se
não era para rir? De tão sério, tão fútil era. Ouça, era assim:
“João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava
Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”. A letra... Era
assim que a letra dizia. Como se falasse. A dizer, como se falar
fosse próprio. Dele ou dela. Diga-me: havia como não tomá-la
também para mim? Pois é, aquilo que nunca me pertenceu ou jamais
pertenceria era o que eu queria. Então a linha terminava assim:
“João foi pra os Estados Unidos, Tereza para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim
suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha
entrado na história”. Bastou-me. Fui desfrutar dos louros. Fazemos ou não fazemos parte desta Quadrilha, como primeiro nos disse Drummond?"
Saiu sem
despedir-se. Não deu-me escolha. Esquecê-lo, como? Meu amigo tem
algo de inapropriado.
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