sábado, 24 de março de 2012

Os Pernetas


O Beijo, Pablo Picasso, 1969


Ela queria sair e disse: - Você não tem confiança em mim?

Ele, com medo de perdê-la, replicou: - Não é que não tenha confiança em ti mas, não queria que saísses só. Nunca se sabe o que se pode encontrar nesta situação. Tenho muito medo do que possas encontrar. A não ser que não gostes mais de mim. Sufoco-te?

Impaciente, ela respondeu: - Sei lá. É que me deu uma vontade de sair sozinha, só isto. Há tantas coisas que desejo perceber com os meus sentidos, sem nenhuma interferência.

- Quem sou eu para colocar freios à tua liberdade, ele disse com um certo desgosto na voz. - Vá e tire tuas próprias conclusões. Ela disse pois é, enquanto acabava de retocar os cílios e, sem olhá-lo, saiu à procura da bolsa.

- Se é isto mesmo que queres, respeito. Mas não impeça-me de ficar apreensivo, hein! Deixe o celular ligado, por favor. E foi pegar o livro, meio chateado por não encontrar os óculos.

Mal conseguiu ler a primeira frase, arrebatado que foi por um turbilhão nauseante de imagens.

Ela foi. E quebrou a perna. Fratura exposta. Pensou em não voltar mas voltou. Arrastando-se, chegou.

Ele quis saber dos detalhes, ela contou sem omitir nenhum. Ele quis dizer bem que eu avisei mas, segurou-se, não disse. Invés disto, tomou-a nos braços, disse que a amava, que sem ela tudo era nada e a beijou, beijou, beijou-a tanto que ela viu-se obrigada a dizer que estava com sede.

No caminho até a cozinha, elaborou. Correu até a garagem, pegou um martelo e esmigalhou o joelho esquerdo.

Equilibrando a água dentro do copo, voltou pulando numa perna só.

Ela riu e disse que aquilo não tinha a menor graça, que não ficava nada bem ele brincar com coisa séria. - Palhaço!

Ele disse, não, que não estava brincando, que fizera aquilo por ela, que não fazia nenhum sentido ficar inteiro quando ela era metade.

Ela disse, que fofo, vem cá dá-me um abraço. - Você não precisava fazer isto. Agora somos dois pernetas, disse com certa graça.

- Seremos um do outro a perna ausente.

E a abraçou como se abraça o amor e ela teve um leve estremecimento. Passou-lhe pela cabeça que ele poderia ter evitado tudo aquilo. Se... Não, não lhe tinha mágoa, nada mais lhe doía a não ser a certeza de que aquele era, de fato, o seu homem.

E choraram, entrelaçados e sós.  


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