O Beijo, Pablo Picasso, 1969
Ela queria sair e disse: - Você não tem confiança em mim?
Ele, com medo de perdê-la, replicou: - Não é que não tenha
confiança em ti mas, não queria que saísses só. Nunca se sabe o
que se pode encontrar nesta situação. Tenho muito medo do que
possas encontrar. A não ser que não gostes mais de mim. Sufoco-te?
Impaciente, ela respondeu: - Sei lá. É que me deu uma vontade de
sair sozinha, só isto. Há tantas coisas que desejo perceber com os
meus sentidos, sem nenhuma interferência.
- Quem sou eu para colocar freios à tua liberdade, ele disse com um
certo desgosto na voz. - Vá e tire tuas próprias conclusões. Ela
disse pois é, enquanto acabava de retocar os cílios e, sem
olhá-lo, saiu à procura da bolsa.
- Se é isto mesmo que queres, respeito. Mas não impeça-me de ficar
apreensivo, hein! Deixe o celular ligado, por favor. E foi pegar o
livro, meio chateado por não encontrar os óculos.
Mal conseguiu ler a primeira frase, arrebatado que foi por um
turbilhão nauseante de imagens.
Ela foi. E quebrou a perna. Fratura exposta. Pensou em não voltar
mas voltou. Arrastando-se, chegou.
Ele
quis saber dos detalhes, ela contou sem omitir nenhum. Ele quis dizer
bem que eu avisei mas,
segurou-se, não disse. Invés disto, tomou-a nos braços, disse que
a amava, que sem ela tudo era nada e a beijou, beijou, beijou-a tanto
que ela viu-se obrigada a dizer que estava com sede.
No caminho até a cozinha, elaborou. Correu até a garagem, pegou um
martelo e esmigalhou o joelho esquerdo.
Equilibrando a água dentro do copo, voltou pulando numa perna só.
Ela riu e disse que aquilo não tinha a menor graça, que não ficava
nada bem ele brincar com coisa séria. - Palhaço!
Ele disse, não, que não estava brincando, que fizera aquilo por
ela, que não fazia nenhum sentido ficar inteiro quando ela era
metade.
Ela disse, que fofo, vem cá dá-me um abraço. - Você não
precisava fazer isto. Agora somos dois pernetas, disse com certa
graça.
- Seremos um do outro a perna ausente.
E a abraçou como se abraça o amor e ela teve um leve
estremecimento. Passou-lhe pela cabeça que ele poderia ter evitado
tudo aquilo. Se... Não, não lhe tinha mágoa, nada mais lhe doía a
não ser a certeza de que aquele era, de fato, o seu homem.
E choraram, entrelaçados e sós.
Incrivelmente comovente o conto dos pernetas.
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