A Visita do Médico, Frans van Mieris, 1657
“É a dor. Esta
dor! Começa aqui e vai”, aponta com o indicador o rumo da nuca ao pé. Não eram
ainda seis horas.
“Ele deve
curar. Ele tem que curar. Estudou
para isso”.
“Mas ele
era... Como vou dizer... Indiferente?”.
“Não, até que
não. Tenho uma intuição... sabe, será que mente? Sei lá, preocupação com a tese, alunos, carreira, legado... Ou quem sabe inúmeros plantões, as
greves... Apoiara duas greves recentes, mas desistira do pleito quando soube
que colegas mais novos foram promovidos. Isto explica muita coisa, não explica?
É que nem novela”.
O espaço entre
as consultas variava. E a bendita agenda. Aqui entre nós,
danada e volúvel agenda. Mas, havia algo que incomodava. Entre as múltiplas
faces, havia um insolúvel problema de comunicação. Freqüentemente A esquecia de
comunicar a B o que C fizera; D reclamava a falta de organização de E; F dizia
que não era com ele; G então, para evitar um mal maior, pegava um receituário e...
O resto do abecedário resmungava incongruências. Muitos temperamentos e apenas
uma era a alma dela. Chegar ao ponto, ao “x” da questão, necas!
“A cada sessão
tenho que recordar todos os procedimentos e exames anteriores. O problema é que
eu também tenho memória fraca e nem sempre me lembro dos detalhes.
Conseqüência: cada consulta resulta em sorrisos, afagos, júbilos, elogios, tapinhas
nas costas, uma ou outra piada e pronto. Será que com todo mundo é assim? Será
que no fim todos acabam concordando que a culpa é sempre do ausente? Deixa pra lá”.
A dor
persiste. A horda aumenta. Apatia. Pelos corredores, equipamentos danificados
jazem à espera. Não há dinheiro, cérebros ou estômago que chegue, penso. As dores
cantadas em prosa e verso. Solfeja em dó a fila que serpenteia o piso trôpego. Sacrossanta
canção. Buscar a nota mais sublime. Eis a soprano chirriando uma tosse menor;
emerge o barítono com um profundo arfar; alardeia o tenor sua anemia em quinta.
Bemóis, sustenidos, terças, sétimas com nona, vicejam. Arabescos em falsete
fraseiam o ar. Ah, um contralto que evitasse o uníssono desse canto platônico. Alguém
desafina e passa. Uma monótona mariposa rodopia uma lâmpada sôfrega. Matar o
tempo! Gemer, gritar, espernear: cacofonia indigna. Notas enrijecidas se
debatem em fuga, encardidas. É preciso ser cordial. Muda súplica, precária
manhã. Os aventais brancos e azuis e verdes patinam uma coreografia enviesada:
tudo é exibição, espetacular promessa, processos a serem entreguem no guichê 42
que, infelizmente, nos últimos meses, passa por reformas (o término depende da
aprovação de um aditivo): eis que tudo foi temporariamente transferido para a sala
75, no quinto andar do prédio anexo.
A dor sobe e
desce. Redemoinho de imagens desconexas, irregulares, habitadas por questões
drásticas. A mercê, não tem alternativa senão cambalear até a calçada e estender-se
na grama enxovalhada, acossada. Fica assim por um fio de hora. Quando
acorda, dá por si sedada, desnuda, operada e costurada, com alta prevista para daí
a três horas. Entregam-lhe uns termos. “Assine aqui, aqui e aqui. Nos isente
de toda e qualquer imperícia, por favor”. Apenas um cochilo, um descuido, conta e sorri errante.
“Em se
tratando de medicina, você sabe, tudo é experimental. O conhecimento depende da
posição de cada um ocupa na hierarquia. Tudo é relativo e ninguém quer ir praquele lugar ”.
Longe, vem-me
à lembrança a frase que meu pai me brindou numa das raras vezes em que se
dignou a olhar-me nos olhos. Frase simples, acostumada: “Das muitas coisas que
odeio a mais execrável é comida de hospital”.
Quanto a ela
(hum!), teve que remarcar, pela terceira vez, o retorno. Ocorreu outra pane no computador.
“É... final das contas distrair-me um pouco”.
A comida do hospital, o cheiro de hospital e os corredores do hospital. Doentes, tememos o hospital. E o pior é quando o computador está em pane. Gostei muito deste conto!
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