The Flight of the dragonfly in Front of the Sun, Joan Miró, 1968
Acordei e
não me vi. Pensei: estarei no banheiro, na cozinha ou diante da
janela a olhar pro céu nublado nessa manhã com promessa de
temporal? Esqueci. Dormi um pouco mais. Assustou-me o barulho de
furadeira no apartamento do lado. Deve passar das nove. Atrasado.
Tudo bem, tenho boa desculpa.
Mas onde
estou? Era pra eu estar aqui, vestindo as calças. Atravesso o
corredor, vejo a porta do banheiro aberta - ninguém. Na sala, na
área... Tampouco. Onde fui parar? É brincadeira: pique esconde, não
tem a menor graça! Vamos, apareça, temos muito a fazer.
Devo
estar escondido em algum lugar. Debaixo da cama, nada. Guarda-roupa,
estante... não. Devo estar nalguma daquelas caixas de bugigangas.
Vasculho: como é possível perder-me, sem mais menos, do nada,
assim. Não, certamente estou esquecido nalgum bolso de calça.
Pretas, bejes, azuis... nada. Na escrivaninha! Envelopes antigos,
documentos, contas, recibos, notas, cupons fiscais e panfletos de
propaganda... onde? Em nenhum pacote, não entre as páginas das
revistas, dos livros... Nem no lixo estou. Onde, onde então me
esquecera?
Tenho
notado uma certa estranheza, umas ausências, sei lá. Deve ser a
idade. Normal. Desgaste, só pode. Daí não ligar, deixar passar,
não dar muita importância, mesmo porque sempre acabo me encontrando
em algum lugar. Ora embaixo do tapete, ora nalguma prateleira, na
caixa de ferramentas, no meio daquele monte de parafusos (não sei
porque guardo tanto parafuso, pregos, pedaços de arame...). Teve dia
que me encontrei sabe onde? Dentro do forno de micro-ondas,
encolhido, qual grão de pipoca esquecido de pipocar. Deu dó me ver
naquele estado. Mas graças a ajuda do meu médico (sujeito batuta)
pude recuperar um pouquinho de mim mesmo, ali tão pequenino dentro
das pílulas escarlates. Se não fossem elas... Teria alcançado a
condição de... sei lá, o que existe de mais ínfimo neste mundo?
Pois é, grande mesmo só as menores coisas que me assustam. Tem
horas que imploro um choque elétrico.
Divaguei.
Perdi o foco. Deixe-me ver: estava comigo na noite passada. Lembro
vagamente, sentia-me feliz, em paz. Ah, sim: fiz alguns comentários
logo depois de ter lido aquela história do homem que virou suco.
Coisa improvável, disse. E mais: que os escritores procuram chifres
em cabeça de porca. Dá nisso: piram na maionese e nos levam junto.
Preciso de realidade, realidade nua e crua. Sim! Selei um pacto. De
que não leria mais ficção. Foi isso. Concordei que doaria todos os
meus livros ao primeiro orfanato que encontrasse na lista telefônica;
que, dai em diante, me preocuparia apenas dos noticiários e de
manuais técnicos; que isto bastaria para estabelecer um bom e
saudável sentido para a vida.
Pergunto:
está acontecendo de verdade? Como é possível sentir-me assim, tão
despossuído? Será que existe um termo médico que defina este
estado? Se não existir uma denominação, se não constar de nenhum
compendio, se ninguém ainda mencionou tal façanha, terei
oportunidade de virar objeto de estudo. Serei uma aberração, um
descuido da natureza, é o que serei.
Volte
aqui, negligente! Cansei desta sua mania de sempre optar pela
maioria, deste teu desejo de ser igual a todo mundo. É isto mesmo
que queres, sumir de vez de mim? Evaporaste assim, sem sequer deixar
ao menos um bilhete, um abraço de despedida, uma palavra de adeus,
qualquer lembrança, conforto que seja, para os dias que se seguirão
desacompanhado de mim, sem pai, sem mãe, sem entes nem aderentes e
agora sem a mim mesmo para chamar de meu. Esquece. Vou trabalhar.
Fazer de conta que tudo continua como
antes no quartel de abrantes.
No ponto
de ônibus com certeza não estou. Talvez já esteja sentado diante
do computador finalizando aquelas tabelas que comprometi-me entregar
até o meio dia. Tudo é muito estranho. E ainda por cima este cartaz
a gritar que traz o meu amor em sete dias. Simpatia garantida ou o
dinheiro de volta. Não, o discípulo das sete deusas não pode
ajudar-me. Gosto de mim mas não posso dizer que me amo. Será que
tem a ver? Caracas, agora fiquei deprimido. Custa-me sangue, suor e
lágrimas construir-me e agora esta é resultado? Abandono, sumiço
de mim. Espera aí, mas aquele ali sou eu. Lépido e fagueiro como se
não houvesse culpa. Que faço do outro lado da calçada? Volte aqui,
seu safado, como ousa?
Fiz que
não ouvi, fingi que não era comigo. A cada dia aparecem mais
doidos. Vou continuar meu caminho como se houvesse amanhã. Um passo
de cada vez, receitou-me o doutor. Alguém do outro lado da rua
parece que viu um fantasma. Eu, hein! Melhor me proteger. Gente louca
é capaz de tudo. Mas onde está a polícia que não toma uma
providência?
Interessante narrativa, em que o fantástico se desloca para dois narradores em primeira pessoa, como um eu partido. É por aí mesmo, Paulo Laurindo?
ResponderExcluirSabe criança, quando vê algum objeto novo e estranho, e fica encarando, entretida e curiosa?
ResponderExcluirEntão. Foi assim que me senti lendo esse conto.
A forma de narrativa tão diferente, tendendo um pouco para o surrealismo me agradou imensamente.
A mensagem mesmo assim foi clara e com ela me identifiquei muito. Tem se tornado cada vez mais normal nos perdermos de nós mesmos e vez por outra já dei por mim no meio da rua me perguntando quem seria aquela estranha com as minhas roupas.